terça-feira, 2 de outubro de 2007

Jesus no DOC BLOG, por Patrícia Rebello

Mais um crítica sobre o Jesus no Mundo Maravilha. Esse post foi originalmente postado no DOCBLOG, do jornalista Carlos Mattos. Essa crítica foi escrita pela colaboradora Patrícia Rebello, no dia 20 de setembro, logo após a pé estréia carioca, que aconteceu na FACHA. Para ver o docblog é só clicar aqui. Abaixo, a íntegra do texto da Patrícia.

MUNDO LOUCO MUNDO

Jesus no Mundo Maravilha
por Patrícia Rebello

"Ele está matando o Tempo! CORTE-LHE A CABEÇA!" ordenou a Rainha de Copas aos guardas. E desde esse dia, o Chapeleiro Maluco – que, para o bem da literatura não perdeu a cabeça – e seus amigos, Arganaz e Lebre de Março, estão sempre tomando chá, porque por ter o Chapeleiro brigado com o Tempo são sempre 6 horas da tarde. Ao menos foi isso o que Alice encontrou no tal País das Maravilhas.

A cena mais famosa do livro de Lewis Carrol não me saía da cabeça enquanto assistia ao documentário Jesus no Mundo Maravilha. Não por simples associação de títulos, mas porque ao criar uma lógica aparentemente normal para um discurso aparentemente louco, o filme de Newton Cannito descreve o fato de que um mundo louco pode se viabilizar como normal.

Jesus no mundo Maravilha concebe um debate ético sobre ideais e condutas que levaram três homens a se tornar – e a deixar de ser - policiais. Jesus, Lúcio e Pereira, após uma vida inteira dedicada à Polícia Militar, foram exonerados. O filme trata de suas experiências, condutas, dificuldades e observações sobre um ‘estado de coisas’ da corporação. Mas o filtro por onde passam essas estórias, a interferência do diretor sobre os discursos é o grande diferencial aqui. Cannito manipula, engendra essas vozes em uma estética ousada, deslocando dramas e falas de seus ambientes e isolando-os numa locação pra lá de controversa: o filme se passa em grande parte num parque de diversões. Dessa opção, surgem personagens que inspiram tanto atração quanto repulsa.

Jesus, pai de duas filhas pequenas, e Lúcio, que buscou na profissão vingança para a morte da mãe, confessam logo no começo do filme que ser policial significava a concretização de um ideal de infância; Pereira enxergou na profissão uma licença para fazer justiça com suas próprias mãos. Na base destes discursos está uma idealização lúdica da Polícia, uma imagem mais ligada às mitologias dos quadrinhos e narrativas de ficção que a uma legislação judiciária. A pegada do filme é exatamente essa. Um parque de diversões como cenário de violência é tão surreal quanto o ‘discurso de criança’ aprisionado nos corpos daqueles homens. Isso faz de Jesus um documentário mais ficcional que qualquer ficção, onde, ao contrário daqui, o esforço está em criar uma impressão real. Se não compactuarmos com essa falta de lógica, com a forma como relações e pessoas estão sujeitas a essa falta de sentido, não conseguiremos embarcar no universo ilustrado por Cannito.

Mas essa ficção desmorona quando se percebe que existe um outro lado que sente na carne que esses homens, que pensam e agem como crianças, continuam sua performance fora da tela. É duro perceber que fora do filme, nem todo efeito visual é tão engraçadinho como parece. E aí, quem cai na real é o público.

Esse ‘outro lado’ toma forma nas falas de Lucimar Pereira e Eremito Santos, pais de Luís Francisco, assassinado por policiais quando saía de casa, pelo simples fato de ser negro, diz a mãe. Esses dois personagens pertencem a um outro universo, não habitam o parque de diversões, mas depõem para uma câmera tendo por trás um fundo neutro. Suas falas, duras e transbordantes de dor, contrastam com as falas picarescas dos ex-PMs, ‘maquiadas’ pelo diretor ao incorporarem efeitos especiais, músicas e ambientes das locações do documentário. Na última sequência do filme, Cannito simula um tribunal, onde esses dois lados são confrontados. Às secas palavras de Lucimar e Eremito correspondem os olhares baixos e deslocados dos ex-PMs, como crianças sendo repreendidas.

Jesus no Mundo Maravilha é crítica ácida e sarcástica a um regime de coisas do mundo, sem o menor comprometimento com qualquer moral politicamente correta. O diretor se arrisca em metáforas invasivas e algumas vezes maliciosas; não busca no discurso dos personagens a força do filme, mas sim ao sublinhar nas falas a ‘loucura’ daquilo que se relata como se fosse coisa simples e banal. Chutando o pau da barraca, rindo do que não se ri, seduzindo seus personagens ao colocá-los sob o foco da câmera, dando linha para a perpetuação da ilusão que ela produz, a força do filme surge mesmo é na forma de uma crítica mordaz à idéia de que uma imagem possa produzir qualquer tipo de verdade.