terça-feira, 2 de março de 2010

Defesa de "Jesus"- por Newton Cannito

“Jesus no mundo maravilha” é uma mistura de Jean Rouch com “Panico na TV”
De Jean Rouch tem vários procedimentos de cinema verdade, com a presença ostensiva da câmera, a metalinguagem , a subjetivação da narrativa, a assincronia som e imagem e as representações "dramatizadas" do imaginário dos personagens. Do Pânico, o filme traz o humor, a auto ironia, o trash, a musica brega e a criação a partir do meta-espetáculo televisivo.



Em sua resposta a critica que Cesar Guimarães e Cristiane Lima fizeram de "Jesus...", Jean Claude Bernardet observou que ninguém analisou com cuidado a minha presença corporal no filme.

Realmente.

Eu mesmo não planejei isso com cuidado, apenas não inibi nada e foi surgindo várias situações. Lembro que foram poucos momentos, estavam legais na ilha de edição e decidi deixar. Porque não, né? Achei legal mostrar eu meio palhaço. Eu pensei que ninguém ia notar muito e não pensei que isso teria grande importância. Mas me enganei. Desde as primeiras exibições percebi que minha presença em cena causava um impacto muito grande.Choca as pessoas.

Porque será?

Refletindo um pouco sobre isso cheguei a algumas hipóteses:



a) As pessoas não sabem a diferença entre personagem e diretor

Acham que a ação do diretor dentro do filme é IDENTICA ao DISCURSO do filme.

Isso é desconhecimento do básico de teoria narrativa. Mesmo uma boa analise imanente e formalista não cometeria esse erro.

A minha presença no filme é apenas como um personagem que criei, um palhaço bufão que revela o mundo em que ele vive.

Não se pode confundir as opiniões do palhaço com as opiniões do diretor. Acredito que é por acharem antiético a atuação do "personagem documental que represento" que alguns críticos acham que eu sou antiético.

Dentro desse critério Orson Welles seria antiético, pois fez um personagem polêmico em “F for Fake”.

Dentro desse critério Dario Fo seria um machista, pois ele tem cenas com bufão machista. E por aí vai.



b) Ontem falando com um amigo (Nicolas Monasterio) ele me falou mais sobre o personagem do Bufão

Eu saquei que esses críticos meio católicos ainda estão presos a logica do melodrama. Por isso clamam pela autenticidade e tem pânico do que consideram “cinismo”. O que eles não entendem do personagem do Bufão é que:

b.1) Ele retrata o horror da sociedade

b.2) E para ter o direito de fazer isso, o bufão tem que se identificar com o horror. Ser ele mesmo "um deles" e ter sido muito humilhado e se auto destruir sempre.



Foi isso que fiz desde o inicio do filme.

Não sei como não percebem que o grande diferencial de minha presença é que eu destruo a mim mesmo. Hoje vendo o filme percebo que fiz o "personagem do diretor" ser o mestre de cerimônias cômico e maluco de um circo grotesco

É por estar dentro desse circo de horrores que eu posso criticá-lo!

Essa identificação é importante.

E é o que faz a diferença.

Senão vira humor que xinga os outros para se auto-preservar. Seria um humor moralista.

O humor que eu admiro, não faz isso O humor que fiz no “Jesus...” não é desse tipo.

O que fiz é construir um personagem que admiti fazer parte do "mundo que ele está criticando". Ele se coloca com mais um.

Isso deve chocar os intelectuais que no alto de sua tradicional arrogância gostam de se sentir superiores aos personagens retratados

Seja superior para julgar.

Seja superior para se compadecer e ter piedade.

Mas sempre superiores.

Em “Jesus...” eu sou mais um. E rio das piadas fascistas e racistas. Foi demais para os intelectuais burgueses católicos.



c) Mas o interessante é que foi só por isso - por eu me colocar como mais um deles - que consegui tantos depoimentos surpreendentes e chocantes.



Foi por rir de suas piadas racistas que eles me revelaram seu racismo. Foi por não julgar seu fascismo que eles revelaram seu fascismo.

Um exemplo: consegui que os policiais desse uma aula de "Tortura" de cara lavada!

Alguém tem noção do que é isso?

Ninguém valoriza isso. Eu valorizo

Acho uma imagem inédita.

Pessoalmente eu nunca vi um documentário que conseguiu isso. Isso revela mais sobre a policia brasileira do que 8 mil denúncias escandalizadas do Caco Barcelos.



Por isso choca tanto.

Isso só foi possível, pois eu realmente AMAVA meus personagens

AMAVA

Eu não os julgava.

Eu não tive dó deles

Eu realmente gostava deles.



O documentário brasileiro é, geralmente, muito moralista. O cara vai filmar um bandido já com inúmeros pré-julgamentos.

Não pode.

Nisso o documentário é igual ficção. Temos que amar nossos vilões. E a forma de amá-los é nos identificar com eles e ver o que tem neles que é parte de nós mesmos. Se não tivesse neles parte de nós mesmos eu não teria interesse neles. Se tenho interesse neles é porque são de meu povo, de minha família, tenho amigos que pensam assim e o pior de tudo – eu tenho que admitir, que eu – mesmo sendo um “propenso intelectual tupiniquim da USP”, mesmo tendo estudado direitos humanos com Fabio Konder Comparato e Renato Janine – mesmo assim eu já tive alguns momentos que pensei como eles! Só pensei. Mas pensei. Eles captaram. Eles fizeram. Mas eu admito que já pensei como eles. Que jogue a primeira pedra o intelectual que nunca pensou. Não acho que sou melhor que eles. E também não acho que os intelectuais que odiaram o filme estejam isentos do fascismo tupiquim. Inclusive, me parece que nível de raiva desss intelectuais contra o filme mostra que algo os incomodou de verdade, a nível pessoal. Será que não foi a explicitação de que nós – cineastas e intelectuais – não somos isentos? Sempre me pareceu que as pessoas muito homofobicas tem algum medo excessivo de homossexuais, um medo típico de quem tem um desejo latente. Amor e ódio são os dois lados da mesma moeda e quem é bem resolvido com uma questão, não tem tanto ódio do lado oposto. O mesmo acontece com o fascismo. Fico imaginando que o ódio dos intelectuais contra “Jesus...” deve ter sido por isso: pela explicitação de que o intelectual não é isento do fascismo tupiniquim e que também é parte desse circo de horrores. O que os incomodou é perceber que aqueles policiais apenas efetivaram vontades de vingança que estão dispersas no imaginário de nossa nação. A frase final do palhaço, concluindo o filme corrobora isso.

É claro que os policiais devem ser presos por isso, não tenho dúvidas. Devem ser julgados pela justiça, ok. Mas meu amor pelos direitos humanos me faz ter compaixão e entender que o que eles fazem é também responsabilidade nossa. Se realmente quero ser melhor que os policiais tenho que ter essa compreensão. Senão iremos julgá-los tal como o jornalismo televisivo os julga, vamos julgá-los como se não fossem humanos, iremos julgá-los tal como eles julgam os bandidos. To fora dessa. Ao invés do julgamento defendo a penalização compreensiva.

E como artista tenho que saber que se eu vou representá-los é porque sou parte disso.

Isso muda tudo!



É assim que se faz qualquer arte!

Se você julgar previamente seus personagens você limita a criatividade

Eu realmente gosto de meus personagens e por isso eles se revelaram para mim

E por isso eles também AMARAM o filme!

Isso, aliás, também é curioso. Os intelectuais de BH me acusam de cínico. Mas os personagens amaram o filme!

Será que eles realmente são bobinhos e alienados e foram enganados pelo diretor manipulador? Ou será que eles entenderam coisas que os universitários não entendem? Não é estranho eles não terem ficado bravos comigo e os universitários terem ficado furiosos? Será que os policiais e o palhaço precisam mesmo da ajuda de intelectuais para se defender.

Ou será que - como já provou o Silvio Santos no show do milhão - os universitários nem sempre tem a resposta pronta?

Vale uma pesquisa maior para entender isso!



d) Bom gosto x escracho: A critica de cinema no Brasil – via de regra – é meio aburguesada, meio francesa pré-nouvelle vague.. Eles não gostam e não entendem a arte popular. Gostam de sutileza e a arte popular é explícita. Essa crítica meio aburguesada me lembra o moralismo Rubem Biafora, um critico dos anos 50 que detestava o cinema brasileiro popular.



É uma critica pré-bakhtin.

Desconsideram a importância da estética do escracho.

Não entendem a arte popular. Atacariam Dario Fo e ou qualquer bufão

“Jesus no mundo maravilha” – e muitos outros trabalhos de vários autores - estão sendo vitimas dessa critica aburguesada. Que tal como Rubem Biafóra nos anos 50 quer impor seus valores estéticos ao conjunto da produção.

Temos que lutar contra esse moralismo cristão da critica acadêmica tupiniquim.



e) Tropicalismo

Outra dica: para mim há uma óbvia relação de “Jesus no Mundo Maravilha” com a estética tropicalista.

O uso do espetáculo, a estética do escracho, do avacalho, é evidente no filme!

A relação com “Panico na TV” também é evidente. O palhaço faz o personagem do “Robert”, o moço que quer aparecer e serve de metáfora de um tema muito importante no filme: a vontade de aparecer e ser famoso! É evidente que o filme é também sobre a vontade de ser aparecer na mídia. O palhaço explicita isso. Mas a corporalidade dos policias representando cenas com armas de brinquedo, as cenas dos engravatados dos direitos humanos andando em direção a câmera tal como os filmes de Tarantino, entre outras coisas, explicitam isso!



Outra referência: na hora de fazer o filme eu sempre me lembrava de “O bandido da luz vermelha”. O montador do filme, Andre Francioli também é fã do cinema tropicalista e fez curadoria da obra de Silvio Renoldi grande montador.

Acho que nos dias de hoje “Jesus...” é vitima do mesmo moralismo que tentou destruir o tropicalismo nos anos 60.

O Chacrinha é um gênio, pois já morreu. Mas se estivesse vivo seria destruído pelos universitário tupiniquins atuais, acusado de ser de mau gosto e “antiético”.



E o mais assustador: no campo do documentário os críticos ideologicamente católicos tem se disfarçado de defensores da ética (alias, como sempre, né?) e estão conseguindo uma hegemonia muito grande. Comandados por bons ideólogos e tendo a frente alguns filmes de evidente qualidade estética eles vem tentando estabelecer regras, decálogos, padrões, para destruir outros tipos de cinema (que eles – com a verve dos grandes moralistas – definem como antiéticos).

Ao controlar os debates públicos sobre documentário e influenciar e participar dos júris e da academia, esses criticos tem conseguido neutralizar a inovação e o documentário brasileiro tem se tornado uma série de homenagens bem intencionadas a figuras consensuais. É assustadoramente chato.

É uma história que se repete desde que o mundo é mundo: são os caretas moralistas politicamente corretos tentando controlar a ousadia estética e temática.

Mas você, que torce pela ousadia, não se desespere! Nos temos uma grande vantagem: os moralistas são meio chatos e nós curtimos a vida e os seres humanos. Ainda acho que venceremos.

Newton Cannito