quarta-feira, 5 de maio de 2010

ESCÁRNIO DA CRÍTICA CATÓLICA

Este texto é uma resposta ao artigo "Crítica da Montagem Cínica", escrito por César Guimarães e Cristiane Lima, publicado no site português DOC ONLINE (www.doc.ubi.pt). Como montador de Jesus no Mundo Maravilha, vejo-me intimado a escrever, já que boa parte do dilema envolve diretamente as operações que realizei, junto com a direção, na estruturação do filme.
Assim como Jesus no Mundo Maravilha contraria os mandamentos da parcela da crítica que o condena, o tom deste texto também contraria os protocolos da crítica, tanto da boa quanto da má. Estou cada vez mais convencido de que a crítica da crítica compreende o escárnio, o sofisma, o aforismo, o deboche e a má educação. Isto porque a meu ver o artigo em questão esforça-se, a partir de pré-concepções de cunho moral, em tentar provar que Jesus no Mundo Maravilha trata-se de uma monstruosidade anti-ética, um ovni abjeto e supostamente indesejado dentro do espectro daquilo que se habituou chamar de “documentário”. Trata-se de mais um capítulo da cruzada moralista da jovem crítica católica brasileira, que tenta a todo custo impor sua ética.
Em seu blog (http://jcbernardet.blog.uol.com.br/), Jean-Claude Bernardet, que é um dos defensores do filme, acredita que o documentário brasileiro contemporâneo passa por contradições profundas que são salutares. Então decidi contribuir, aprofundando ainda mais o fosso da diferença, escancarando os antagonismos. No ano passado tive a experiência de ler “Jesus no Mundo Maravilha, Uma Carta Aberta ao Realizador Newton Cannito”, de Cézar Melhoral (ou Milhorim, algo que o valha, não me lembro bem se é nome de remédio ou marca de fubá), e fiquei com uma preguiça danada. Lembro-me de dizer ao Newton que não estava interessado na discussão de fundo moral (por trás do refinamento da escrita doutoranda) que o texto levantava e que, sintomaticamente, começava com uma citação de Kracauer, que como seus seguidores sempre teve dificuldade em enquadrar os filmes dentro de suas teorias, nunca conseguindo encaixar a feliz diversidade do cinema em suas gavetinhas de preferência. Alguém já disse que é uma pena alguém tão inteligente e dedicado quanto Kracauer levar a vida toda a erigir um edifício só para dizer que preferia o realismo. Acho divertida a piada. Estamos falando de um tempo pré-Bazin (que, aliás, também era católico, porém bem mais inteligente)…


Mas o fato é que cansei de ficar apenas escutando a ladainha. Em situações e momentos como estes é preciso marcar mesmo posição, abrir frente clara de oposição e de rompimento, desmascarar os bons moços limpinhos e engomados, colecionadores de casacos, supostos defensores da ética, e que atualmente encontram-se entricheirados nas universidades em uma cruzada cristã pelo engessamento do documentário brasileiro. Isto precisa ser combatido, e rápido.
Meu texto pode parecer raivoso, mas seu tom desbocado é proposital, e de fundo filosófico. Tive este insight tomando um cafezinho aqui no Nicola, em Lisboa, frequentado no passado pelo sr. Bocage, que me faz também lembrar de Rabelais, Gregório de Matos, José Agudo e Rogério Sganzerla. Antes de mais nada, é bom deixar claro que pessoalmente não me ofendo com as tentativas neuróticas e desesperadas dos jovens acadêmicos católicos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, em fazer com que seus pontos de vista construam um campo hegemônico. Há tempos que ando cansado mesmo, destes clubes de eleitos que se auto-elegem para tentar impor suas hierarquias de gosto, sua ética e sua moral, no caso das mais esquemáticas. No fundo são motivo de riso, escancarado mesmo – uma piada! Só que alguém tem que começar a dizer que essa igrejinha não é dona da razão, como tenta se fazer supor, pois é preciso e vital que o documentário brasileiro supere de uma vez por todas esse mal de época.

Lembro-me que comecei a editar o Jesus no Mundo Maravilha antes das gravações terem terminado. Era início de ano, e um assistente já havia convertido todo o material que fora gravado em dezembro. Cheguei para visionar e organizar o material, e lembro-me que fiquei entusiasmado. Tudo me parecia ao mesmo tempo estranho e estimulante para um documentário. Chamava a atenção, sobretudo, aquilo que me pareceu um salto em relação ao primeiro documentário de Newton, “Violência S.A.”. Este salto residia no fato das operações irônicas de sentido presentes em “Jesus”, às vezes beirando o absurdo, estarem presentes na própria composição da imagem, dentro de cada quadro, aonde podíamos ver, por exemplo, policiais dando aulas de tortura e contando suas proezas de Charles Bronson paulistano em meio a um mundo colorido de brinquedos mecânicos e algodão doce. Por outro lado, em Violência S.A., que particularmente não me agrada - e já cansei de dizer isto ao Newton e ao Eduardo, co-diretor, acho que a voz over está muitos graus acima do tom farsesco adequado – as operações de ironia, cinismo e escárnio devem-se quase que totalmente ao uso da voz over; já em Jesus a voz over é dispensada, e a ironia, o cinismo, o escárnio e a avacalhação passam a se operar diante da câmera, através da câmera, através da atução direta do diretor no embate com a realidade, através da interação que sua personagem (de diretor bufão) realiza com as demais personagens e em sua combinação com a locação do parque.
Mas estava dizendo do início da montagem. Faltava ainda alguma coisa àquele material que visionávamos, pois com as transformações ocorridas no projeto em seu decorrer,, havia por parte do Newton o desejo intuitivo de fazer um documentário onírico com aquilo tudo. Naquela combinação explosiva de histórias violentas, personagens patéticas e performances apalhaçadas, enveredar pelo sonho e pelo pesadelo parecia-me também ainda mais perigoso e estimulante. Conversamos sobre materiais adicionais, que poderiam ser produzidos para, na articulação com o material já gravado em dezembro, construir afinal a composição onírica que Newton almejava. Lembro-me claramente de pedir-lhe algum material de apoio que fosse abstrato, um trabalho de câmera sobre o espaço do parque, sobre os personagens neste parque, um material que fosse mais plástico e menos descritivo, pois com o conjunto de imagens descritivas, funcionais e objetivas que tínhamos o tal onírico não poderia ser estruturado.
Alguém pode pensar que estas reflexões sobre as opções da direção podem soar estranhas vindas do montador, mas acredito que a montagem de um projeto como este não pode compreender apenas o trato da matéria virtual das imagens, dos sentidos que emanam delas e das articulações entre elas, do resultado estético dos embates da câmera com o real (amém!), mas também a reflexão e a discussão sobre as próprias decisões da realização em sua luta, dada no fio da navalha de uma operação arriscada. Sobretudo porquê estruturávamos o filme por um ponto de vista que, confrontado com nosso entendimento do mundo, parecia-nos grotesco e injustificável. Daí pergunto aos católicos: não se pode fazer um filme cínico para mostrar que o mundo é cínico? Quem é que vai mostrar a fuça autoritária e dizer que não pode?
Assim, nessa dinâmica entre direção e montagem, prensenciei o momento subsequente à ligação da Mãe da vítima ao Newton, superando o medo de falar sobre o caso e prontificando-se, afinal, a dar projeção a suas palavras dentro do projeto. Decidiu-se que ela seria gravada em estúdio, em fundo neutro, portanto fora do espaço do parque – não me lembro se houve outras conjecturas a respeito da escolha da locação para a mãe, poderia ter havido outras opções, mas sinceramente ainda hoje não vejo o que poderia ser mais adequado para o seu registro, levando em conta a intenção de preservá-la da colagem sobre o parque. O parque era o espaço da demência, da loucura e da alienação, não de quem teve o filho assassinado covardemente pela polícia. Penso hoje que ir até sua casa poderia ter sido perigoso, um perigo potencialmente residente no próprio espaço da realidade, que poderia por uma fresta adentrar a sala escura de nossos experimentos cínicos e escarnáticos, e que residiam na idéia sempre frisada por Newton de que o documentário deveria se construir sempre a partir do ponto de vista narrativo dos policiais. Evitar a realidade é um pecado na igreja do documentário? Que seja. Sob esse ponto de vista, omitir o espaço “real” em torno dos pais da vítima foi o que permitiu que o filme pudesse finalmente incorporá-los, ao mesmo tempo preservando a integridade pessoal da mãe e o traçado que o projeto, transformado radicalmente pela imposição do silêncio pela polícia (que proíbira os policiais envolvidos no caso de prestar declarações ao documentário), enfim descobrira.

Sobre o cinismo, uma coisa que sempre me parecia hilária, ao catalogar o material bruto que a certa altura me chegava quase que diariamente na ilha de edição, era o fato que NUNCA, NINGUÉM que aparecia no filme questionava por quê cargas d’água falava-se de tortura em meio a brinquedos; da doutrina evangélica num carrossel; de direitos humanos numa mesa mal improvisada em meio a um parque de diversões. É de uma ingenuidade genuinamente estúpida – sinceramente não há como não rir dos dignos representantes dos direitos humanos sentados no meio de um parquinho, repetindo as velhas ladainhas de sempre, como se fosse normal promover um debate em meio a brinquedos, e com um palhaço estúpido a andar de um lado para outro. Lembro ainda que trabalhei arduamente nesta sequência, para dar cabo satisfatoriamente de um certo “efeito blá-blá-blá”, imaginado pelo Newton, e que consistia na sobreposição das falas do debate, construindo a impressão de que todos queriam falar ao mesmo tempo, sem respeitar a opinião do outro. Aquela confusão toda foi completamente construída na montagem (perdoai!), pois é assim que entendíamos estilisticamente o que ocorre quando põe-se frente à frente burocratas e policiais para discutir o conceito de “direitos humanos”. Aparentemente, a etiqueta e a educação davam a impressão de que às vezes queriam se ouvir. Mas decididamente não estávamos interessados em etiqueta. Etiqueta, como Newton gostava de dizer durante a edição, é a ética da elite, do bem-educadinho. Discutir ética de verdade é mais embaixo.
Rimos e rimos muito na ilha de edição, e ainda hoje me cago de rir quando tenho o prazer de assistir a esta cena. Isso quer dizer que o filme é “contra os direitos humanos”? É assim que os educadinhos das universidades brasileiras preferem ver, para não trair suas teorias teóricas? Divirto-me com a paródia que fizemos, e com a lucidez de Newton em fazer um filme que critica tanto a polícia quanto os críticos da polícia, pois os críticos da polícia e os defensores dos direitos humanos estão presos em idéias e teorias que não se aplicam na realidade, que não lhes permitem atuar de maneira concreta sobre a complexa questão da segurança pública no Brasil. Ficam lá nas suas palestras, nas suas conferências, nos seus programas de televisão, sentados nas suas cadeiras enquanto o pau come na rua. Esses senhores têm o seu papel sim, importante, mas que é importante na sua pontualidade cotidiana, de ação concreta na assistência às pessoas que não têm defesa diante da violência corporativa, da violência do Estado. São necessários e assim são nobres, mas como teóricos são patéticos. Humanismo de academia não resolve. Ademais, é sempre bom lembrar que o documentário estava sendo construído a partir do ponto de vista dos policiais, que sequer suportam ouvir falar de “direitos humanos”, pois para os “direitos humanos” policial é apenas uma abstração, um signo maligno da ditadura, entidades sem existência física – como se também não fossem mais uns fudidos. Tá bem, mas o que você propõe afinal? – diria provavelmente algum furioso estudande - a anarquia? – Sei lá – responderia eu - não sou procurador do Estado, nem defensor profissional dos direitos humanos, e muito menos crítico, que dirá católico. Exigir esta resposta e esta proposição de um documentário, ou qualquer tomada de posição do mesmo a favor deste ou daquele, é puro equívoco. É um pensamento de rodapé. É até feio.

Diante de Pereira, o justiceiro evangélico, sentia um certo ódio (perdoai novamente!). Tive que me controlar um bocado diante da imagem deste homem, que levava suas vítimas covardemente para um matão na zona leste e as executava. Cresci na periferia e já havia topado tipos assim, e ouvido inúmeras histórias destes pés-de-pato. O pé-de-pato para mim é um personagem de infância, que habitava a noite de onde eu morava, trafegando encapuzado pelas ruas de terra em um Maverick negro, em baixa velocidade, arma no cinto, acompanhado de outros 4 justiceiros de bigode bem-feito, com dedos e olhos amarelos. Na periferia sentíamos ódio destas figuras, ficávamos indignados, e quando crescíamos frequentemente gostávamos da idéia de um dia poder fazer também vingança. É essa a lógica que se deseja e que acontece muitas vezes na periferia, a do olho-por-olho e dente-por-dente. No fundo nunca levei isto mesmo a sério, afinal fiquei vivo para poder exterminá-lo ao menos esteticamente. Seria incapaz de matar alguém fisicamente, em nome do que quer que seja, mesmo um assassino fardado, cínico e covarde como Pereira. Aliás, em termos de atuação dentro do documentário, Pereira leva o Oscar – proporcionou-nos uma autêntica cena de documentário clássico ao narrar sua conversão religiosa. É pecado avacalhar o espaço sacrossanto do documentário? Que seja. Gostaria apenas que alguém me dissesse o que é preciso fazer no Brasil para acabarmos de uma vez por todas com a lógica da patrulha.
Quanto ao palhaço, este impôs-se no filme. Impôs-se à equipe de filmagem, à direção e à edição. Confesso num certo periodo do trabalho que lutei contra este palhaço – sua articulação com o restante do material parecia-me ter que ser feita à forceps – era um aparente alienígena no projeto. Mas assim como os outros personagens, ele também estava interessado no filme, e queria tirar proveito da oportunidade: Pereira queria mostrar sua conversão e seu arrependimento, e pregar a palavra de Deus; Jesus queria mostrar como estava triste, e como queria seu emprego na polícia de volta; Lúcio queria fazer no cinema o papel do justiceiro destemido; a vítima queria justiça; e o palhaço queria aparecer na televisão. E para isso dispôs-se ao jogo, tanto que sua atuação passou a modelar-se com o decorrer das gravações, e isto era bastante visível no material – no processo, ele aprendeu por exemplo que era mais engraçado fazer papel de mau-humorado do que fazer suas habituais palhaçadas sem graça. E assim o fez.

No mais, falando genericamente sobre o trabalho, mudaria poucas coisas da montagem. Primeiro, tentaria diminuir drasticamente a voz over de Lúcio no início, e daria mais tempo às imagens inaugurais – há ali um problema de ritmo. E certamente montaria a sequência de Jesus caminhando pelo bairro, em seu dia-a-dia de segurança particular, de outra maneira, sem aquela música de pianinho. A música ali sobra, está over, dava pra ser mais elegante, mas os parcos 2 meses dados pela produção não me permitiram decantar tudo plenamente – sob meu ponto de vista teria sido um trabalho perfeito em sua forma final, não fossem estes pequenos pormenores – o início e a caminhada de Jesus. De qualquer modo, realizar uma montagem tão intensa em apenas 2 meses é um feito bastante grande, e tenho muito orgulho do que pude fazer em tão pouco tempo.

Fizemos um documentário anti-ético? Como montador assumo todas as construções de sentido, foram todas elas fruto de debate, discordâncias e afinidades que foram se resolvendo intuitiva e intelectualmente durante a montagem. É importante frisar o “intuitivo”, pois quando se lê e não se é intuitivo vira-se papagaio, passa-se a enxergar o mundo a partir de determinações que valem uma estrelinha no caderno no esquema clientelista da universidade, mas que tornam a visão obtusa e o pensamento monológico. Daí que a estreiteza intelectual passa a agir sobre os aspectos físicos, fica-se eunuco, com um ar de nerd, têm-se que usar óculos, de preferência fundos e com um grosso aro preto, no máximo vermelho, pra parecer mais despojado, e ficar com uma cara de pudim, com a mão no queixo, predisposto sempre a dizer algo inteligente e perspicaz a cada palavra. Passa-se a citar idéias de Louis Skorecki, que fica clamando pelo mundo um ambiente sagrado, silencioso e litúrgico para a experiência dentro das salas de cinema. É este o cinema das igrejinhas. Particularmente, acho uma merda esta idéia, assim como acho uma cagalhada sem fim a moral católica.

Sinceramente o cinema para mim é algo fetichista, profano e vulgar, suado, ruidoso, barulhento, sujo, fedendo a comida, perdido em alguma sala de Havana, da Índia ou da Nigéria. Disto os moços de cérebro perfumado também têm horror. E têm horror aos peitinhos da negra em El Benny, aos closes maravilhosos como nunca vi em El Benny, ao cinema como espetáculo público coletivo e popular de fato, e não como uma experiência privada numa sala cheia de gente. Uma projeção de El Benny, ficção cubana pós-moderna super bem produzida, em Havana, que tive a oportunidade de ver junto com Jean-Claude Bernardet foi a maior experiência cinematográfica que pude viver (a propósito, essas conexões aqui com Jean-Claude não são apenas acaso, cada vez mais acredito que tudo é uma coisa só. A vida é mesmo holística, é só saber conectar os signos). Tínhamos ido ao cinema para ver o público, o comportamento verdadeiramente sofisticado, cinematográfico e participativo do público cubano, e não houve um minuto sequer em que o público não falava, ou mesmo não se esmurrava, numa cena que ocorreu diante dos meus olhos maravilhados. Maravilhados por ter vivenciado o cinema como um evento social pleno, e maravilhados pela sorte de ter sido presenteado, para além de tudo, com um filme surpreendentemente belo, vivo, pulsante, musical – o oposto dos filmes desossados e secos que os acadêmicos têm o hábito de fazer quando se aventuram por trás das câmeras. Eu e Jean-Claude saímos então exaustos, empapados de suor, moídos e felizes daquela sala, como se estivéssemos saindo de uma deliciosa buceta gigante, de um transe xamânico, de uma festa de Exu. Sempre me pergunto porque é que os críticos gostam de fazer filmes descarnados, sem pinto nem bunda. Não entendem que a oposição ao espetáculo alienador do naturalismo norte-americano, e à pretensão de objetividade dos documentários da TV à Cabo, pode ser dada a partir do contra-espetáculo (mesmo dentro do documentário). Os esquerdistas católicos preferem a igreja, naturalmente, o silêncio, a castração, a penitência. Ai, meu Deus do céu, vai ser sério (e chato) assim no inferno.
Recordo deste episódio em Havana, assim de rompante porque há também uma situação interessante que me lembro, e que pude presenciar nos laboratórios da Teleimage, em São Paulo, e que ocorreu durante uma copiagem de Jesus no Mundo Maravilha. A sala de copiagem tinha uma parede de vidro, que dava para um corredor, e os técnicos do laboratório começaram aos poucos a se postar diante do monitor, e em poucos momentos o documentário foi uma sensação absoluta entre os funcionários do laboratório, que riam com o filme e se divertiam com ele. Ficaram ao final grudados àquilo e adoraram, coisa notável para um grupo de pessoas que lida com a imagem e processa milhares de copiagens de milhares de filmes em seu dia-a-dia. A explicação para isto, a meu ver, deve-se para minha satisfação à eficácia da montagem por um lado, que pôde seduzir e manter um ritmo adequado ao espectador de televisão; e por outro lado pelo fato justamente de Jesus no Mundo Maravilha possuir um humor que a tudo corrói, pois o humor popular é há séculos assim: não perdoa nada, nem a esquerda e nem a direita, e morre de rir dos aspectos grotescos do físico, dos risos canalhas, do ser humano apalhaçado submetido ao ridículo e à estupidez de que é capaz. E a cultura pequeno-burguesa (desculpem, mas não há mesmo melhor palavra) não suporta este humor popular, transcendente, despurado e desconhecedor da moral. Há séculos também que tenta combatê-lo. Há um plano em Jesus que sintetiza esta conexão com o humor popular muito bem: os 3 policiais brincando de foder com o palhaço, num plano médio, e o palhaço fingindo hiperbolicamente a sensação do empalamento quando recebe uma garrafada de plástico no cu. Newton traduz isto em idéias sobre o filme quando diz que “queria fazer uma mistura de Jean Rouch com Pânico na TV”. Então, realismo sim, mas não nos termos dogmáticos que tentam impor. Não o realismo humanista do clientelismo acadêmico. Ludismo então, lúdico e ludder, contra as máquinas acadêmicas do realismo pequeno-burguês!

Então gritam os pudins de óculos: “Humor, nem pensar. Ironia e cinismo, proibido! Escracho então, impossível! Em um documentário, imperdoável! Em um documentário de montagem, sacrílego!”. Os artigos que criticaram o documentário Jesus no Mundo Maravilha levantam a voz em nome da ética, mas seus julgamentos são de cunho moral. E de uma moral católica, visivelmente contaminada por idéias que se traduzem muitas vezes em expressões como “fé” na realidade, “pudor” diante do real, “dez mandamentos”, toda uma terminologia adaptada da liturgia católica. O documentário brasileiro hoje em dia tem até um “decálogo”, como é que é possível? Mas quem tem o espírito atento e não se deixa controlar por estas imposituras pula logo fora, como o próprio Eduardo Coutinho, que mesmo muito longe da oposição radical a isto, que Jesus no Mundo Maravilha representa, driblou e confundiu o obscurantismo realista pré-tropicalista, pré-cinema sonoro, pré-vertov, pré-bakhtin, pré-cervantes, e foi documentar a ficção do ser humano. Quando lia Dom Quixote, sempre tinha a impressão de estar vendo um documentário - não sei por quê :P

A rigor e terminantemente, não tenho nada contra o direito dos católicos, dos acadêmicos e dos realistas ortodoxos fazerem seus filmes. O problema é que agora eles querem dizer o que pode e o que não pode, e só eles querem fazer. E para isso têm formado uma patrulha pesada, que controla júris e editais através do lobby e da instrumentalização acadêmica, tentando determinar aquilo que é e o que não é. Sobre isto, o Newton tem outra frase da qual gosto muitíssimo, e que é mais ou menos assim: “quero que o mundo seja plural, claro, mas quando eu faço um filme eu só quero poder ser autoritário e dizer aquilo que eu penso”. Ser autoritário aqui significa poder ser livre para dizer o que quiser, sobre o que quiser, da forma que quiser, valendo-se do recurso estilístico que julgar mais apropriado para, naquele momento de sua vida e naquele momento do mundo, traduzir em matéria estética aquilo que pensa, sobre pessoas, coisas ou qualquer abstração.


Para terminar logo gostaria de fazer duas citações, mas adianto desde já que não é para conferir autoridade ao que escrevo (apenas acho-as legais, ajudam a sintetizar e a confundir muita coisa ao mesmo tempo); aprendi este recurso de conferência de autoridade nas aulas de redação do cursinho - acho até muito manhoso citar um clássico e tal, encher tudo com notas de rodapé, mas não gosto muito. Tenho mesmo índole de criador e de montador, prefiro lidar livremente com o que leio, vejo e ouço, daí que vou me apropriar sem citar a fonte (não chorem, meninas, vai tudo com aspas):


“Ética é estar à altura daquilo que lhe acontece”.
“A moral é a fraqueza do cérebro”

Este texto, “Escárnio da Crítica Católica”, entra desde já para os anais do documentário brasileiro.

Sem mais, vão ver se eu estou na esquina

André da Conceição Francioli

Lisboa, 16/04/2010

terça-feira, 2 de março de 2010

Defesa de "Jesus"- por Newton Cannito

“Jesus no mundo maravilha” é uma mistura de Jean Rouch com “Panico na TV”
De Jean Rouch tem vários procedimentos de cinema verdade, com a presença ostensiva da câmera, a metalinguagem , a subjetivação da narrativa, a assincronia som e imagem e as representações "dramatizadas" do imaginário dos personagens. Do Pânico, o filme traz o humor, a auto ironia, o trash, a musica brega e a criação a partir do meta-espetáculo televisivo.



Em sua resposta a critica que Cesar Guimarães e Cristiane Lima fizeram de "Jesus...", Jean Claude Bernardet observou que ninguém analisou com cuidado a minha presença corporal no filme.

Realmente.

Eu mesmo não planejei isso com cuidado, apenas não inibi nada e foi surgindo várias situações. Lembro que foram poucos momentos, estavam legais na ilha de edição e decidi deixar. Porque não, né? Achei legal mostrar eu meio palhaço. Eu pensei que ninguém ia notar muito e não pensei que isso teria grande importância. Mas me enganei. Desde as primeiras exibições percebi que minha presença em cena causava um impacto muito grande.Choca as pessoas.

Porque será?

Refletindo um pouco sobre isso cheguei a algumas hipóteses:



a) As pessoas não sabem a diferença entre personagem e diretor

Acham que a ação do diretor dentro do filme é IDENTICA ao DISCURSO do filme.

Isso é desconhecimento do básico de teoria narrativa. Mesmo uma boa analise imanente e formalista não cometeria esse erro.

A minha presença no filme é apenas como um personagem que criei, um palhaço bufão que revela o mundo em que ele vive.

Não se pode confundir as opiniões do palhaço com as opiniões do diretor. Acredito que é por acharem antiético a atuação do "personagem documental que represento" que alguns críticos acham que eu sou antiético.

Dentro desse critério Orson Welles seria antiético, pois fez um personagem polêmico em “F for Fake”.

Dentro desse critério Dario Fo seria um machista, pois ele tem cenas com bufão machista. E por aí vai.



b) Ontem falando com um amigo (Nicolas Monasterio) ele me falou mais sobre o personagem do Bufão

Eu saquei que esses críticos meio católicos ainda estão presos a logica do melodrama. Por isso clamam pela autenticidade e tem pânico do que consideram “cinismo”. O que eles não entendem do personagem do Bufão é que:

b.1) Ele retrata o horror da sociedade

b.2) E para ter o direito de fazer isso, o bufão tem que se identificar com o horror. Ser ele mesmo "um deles" e ter sido muito humilhado e se auto destruir sempre.



Foi isso que fiz desde o inicio do filme.

Não sei como não percebem que o grande diferencial de minha presença é que eu destruo a mim mesmo. Hoje vendo o filme percebo que fiz o "personagem do diretor" ser o mestre de cerimônias cômico e maluco de um circo grotesco

É por estar dentro desse circo de horrores que eu posso criticá-lo!

Essa identificação é importante.

E é o que faz a diferença.

Senão vira humor que xinga os outros para se auto-preservar. Seria um humor moralista.

O humor que eu admiro, não faz isso O humor que fiz no “Jesus...” não é desse tipo.

O que fiz é construir um personagem que admiti fazer parte do "mundo que ele está criticando". Ele se coloca com mais um.

Isso deve chocar os intelectuais que no alto de sua tradicional arrogância gostam de se sentir superiores aos personagens retratados

Seja superior para julgar.

Seja superior para se compadecer e ter piedade.

Mas sempre superiores.

Em “Jesus...” eu sou mais um. E rio das piadas fascistas e racistas. Foi demais para os intelectuais burgueses católicos.



c) Mas o interessante é que foi só por isso - por eu me colocar como mais um deles - que consegui tantos depoimentos surpreendentes e chocantes.



Foi por rir de suas piadas racistas que eles me revelaram seu racismo. Foi por não julgar seu fascismo que eles revelaram seu fascismo.

Um exemplo: consegui que os policiais desse uma aula de "Tortura" de cara lavada!

Alguém tem noção do que é isso?

Ninguém valoriza isso. Eu valorizo

Acho uma imagem inédita.

Pessoalmente eu nunca vi um documentário que conseguiu isso. Isso revela mais sobre a policia brasileira do que 8 mil denúncias escandalizadas do Caco Barcelos.



Por isso choca tanto.

Isso só foi possível, pois eu realmente AMAVA meus personagens

AMAVA

Eu não os julgava.

Eu não tive dó deles

Eu realmente gostava deles.



O documentário brasileiro é, geralmente, muito moralista. O cara vai filmar um bandido já com inúmeros pré-julgamentos.

Não pode.

Nisso o documentário é igual ficção. Temos que amar nossos vilões. E a forma de amá-los é nos identificar com eles e ver o que tem neles que é parte de nós mesmos. Se não tivesse neles parte de nós mesmos eu não teria interesse neles. Se tenho interesse neles é porque são de meu povo, de minha família, tenho amigos que pensam assim e o pior de tudo – eu tenho que admitir, que eu – mesmo sendo um “propenso intelectual tupiniquim da USP”, mesmo tendo estudado direitos humanos com Fabio Konder Comparato e Renato Janine – mesmo assim eu já tive alguns momentos que pensei como eles! Só pensei. Mas pensei. Eles captaram. Eles fizeram. Mas eu admito que já pensei como eles. Que jogue a primeira pedra o intelectual que nunca pensou. Não acho que sou melhor que eles. E também não acho que os intelectuais que odiaram o filme estejam isentos do fascismo tupiquim. Inclusive, me parece que nível de raiva desss intelectuais contra o filme mostra que algo os incomodou de verdade, a nível pessoal. Será que não foi a explicitação de que nós – cineastas e intelectuais – não somos isentos? Sempre me pareceu que as pessoas muito homofobicas tem algum medo excessivo de homossexuais, um medo típico de quem tem um desejo latente. Amor e ódio são os dois lados da mesma moeda e quem é bem resolvido com uma questão, não tem tanto ódio do lado oposto. O mesmo acontece com o fascismo. Fico imaginando que o ódio dos intelectuais contra “Jesus...” deve ter sido por isso: pela explicitação de que o intelectual não é isento do fascismo tupiniquim e que também é parte desse circo de horrores. O que os incomodou é perceber que aqueles policiais apenas efetivaram vontades de vingança que estão dispersas no imaginário de nossa nação. A frase final do palhaço, concluindo o filme corrobora isso.

É claro que os policiais devem ser presos por isso, não tenho dúvidas. Devem ser julgados pela justiça, ok. Mas meu amor pelos direitos humanos me faz ter compaixão e entender que o que eles fazem é também responsabilidade nossa. Se realmente quero ser melhor que os policiais tenho que ter essa compreensão. Senão iremos julgá-los tal como o jornalismo televisivo os julga, vamos julgá-los como se não fossem humanos, iremos julgá-los tal como eles julgam os bandidos. To fora dessa. Ao invés do julgamento defendo a penalização compreensiva.

E como artista tenho que saber que se eu vou representá-los é porque sou parte disso.

Isso muda tudo!



É assim que se faz qualquer arte!

Se você julgar previamente seus personagens você limita a criatividade

Eu realmente gosto de meus personagens e por isso eles se revelaram para mim

E por isso eles também AMARAM o filme!

Isso, aliás, também é curioso. Os intelectuais de BH me acusam de cínico. Mas os personagens amaram o filme!

Será que eles realmente são bobinhos e alienados e foram enganados pelo diretor manipulador? Ou será que eles entenderam coisas que os universitários não entendem? Não é estranho eles não terem ficado bravos comigo e os universitários terem ficado furiosos? Será que os policiais e o palhaço precisam mesmo da ajuda de intelectuais para se defender.

Ou será que - como já provou o Silvio Santos no show do milhão - os universitários nem sempre tem a resposta pronta?

Vale uma pesquisa maior para entender isso!



d) Bom gosto x escracho: A critica de cinema no Brasil – via de regra – é meio aburguesada, meio francesa pré-nouvelle vague.. Eles não gostam e não entendem a arte popular. Gostam de sutileza e a arte popular é explícita. Essa crítica meio aburguesada me lembra o moralismo Rubem Biafora, um critico dos anos 50 que detestava o cinema brasileiro popular.



É uma critica pré-bakhtin.

Desconsideram a importância da estética do escracho.

Não entendem a arte popular. Atacariam Dario Fo e ou qualquer bufão

“Jesus no mundo maravilha” – e muitos outros trabalhos de vários autores - estão sendo vitimas dessa critica aburguesada. Que tal como Rubem Biafóra nos anos 50 quer impor seus valores estéticos ao conjunto da produção.

Temos que lutar contra esse moralismo cristão da critica acadêmica tupiniquim.



e) Tropicalismo

Outra dica: para mim há uma óbvia relação de “Jesus no Mundo Maravilha” com a estética tropicalista.

O uso do espetáculo, a estética do escracho, do avacalho, é evidente no filme!

A relação com “Panico na TV” também é evidente. O palhaço faz o personagem do “Robert”, o moço que quer aparecer e serve de metáfora de um tema muito importante no filme: a vontade de aparecer e ser famoso! É evidente que o filme é também sobre a vontade de ser aparecer na mídia. O palhaço explicita isso. Mas a corporalidade dos policias representando cenas com armas de brinquedo, as cenas dos engravatados dos direitos humanos andando em direção a câmera tal como os filmes de Tarantino, entre outras coisas, explicitam isso!



Outra referência: na hora de fazer o filme eu sempre me lembrava de “O bandido da luz vermelha”. O montador do filme, Andre Francioli também é fã do cinema tropicalista e fez curadoria da obra de Silvio Renoldi grande montador.

Acho que nos dias de hoje “Jesus...” é vitima do mesmo moralismo que tentou destruir o tropicalismo nos anos 60.

O Chacrinha é um gênio, pois já morreu. Mas se estivesse vivo seria destruído pelos universitário tupiniquins atuais, acusado de ser de mau gosto e “antiético”.



E o mais assustador: no campo do documentário os críticos ideologicamente católicos tem se disfarçado de defensores da ética (alias, como sempre, né?) e estão conseguindo uma hegemonia muito grande. Comandados por bons ideólogos e tendo a frente alguns filmes de evidente qualidade estética eles vem tentando estabelecer regras, decálogos, padrões, para destruir outros tipos de cinema (que eles – com a verve dos grandes moralistas – definem como antiéticos).

Ao controlar os debates públicos sobre documentário e influenciar e participar dos júris e da academia, esses criticos tem conseguido neutralizar a inovação e o documentário brasileiro tem se tornado uma série de homenagens bem intencionadas a figuras consensuais. É assustadoramente chato.

É uma história que se repete desde que o mundo é mundo: são os caretas moralistas politicamente corretos tentando controlar a ousadia estética e temática.

Mas você, que torce pela ousadia, não se desespere! Nos temos uma grande vantagem: os moralistas são meio chatos e nós curtimos a vida e os seres humanos. Ainda acho que venceremos.

Newton Cannito

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Olá amigos,
"Jesus" sempre dá polêmica.
O Jean Claude Bernardet novamente escreveu sobre o filme que dirigi em seu blog. Agora ele respondeu a crítica do César Guimarães, que ficou atacando o filme.
É um debate interessante, sobre o filme e sobre os modos da crítica.
Quem quiser se manifestar e escrever pode comentar.
Mas como a briga está boa, se alguém quiser postar alguma crítica maior pode me escrever no newton.cannito@gmail.com que avaliio se da para publicar aqui no blog.
Segue o link da resposta do Jean Claude: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ e o texto abaixo.
Newton


12/02/2010
Lula e Jesus

Como a análise de LULA, O FILHO... sugerida por Eduardo Escorel, a análise de JESUS NO MUNDO MARAVILHA por César Guimarães e Cristiane Lima é uma análise imanente que não trabalha com parâmentros externos à obra. O conceito de base é a obra-em-si.

O texto revela uma verdadeira paixão pela análise, o que lhe confere uma grande densidade.

O que não exclui alguns vãos na armadura. Se se critica o filme por não problematizar a palavra “bandido” fartamente usada, por outro lado o texto não problematiza suficientemente palavras-chave como “cinismo”, e menos ainda “ética”.

Tampouco está problematizado um aspecto do texto que considero essencial: por que o texto é tão furioso? por que os autores estão tão furiosos? o que neles foi ferido pelo filme? Sim, entendi, o cinismo feriu a ética mas esta formulação não é suficiente.

A paixão pela análise leva os autores a se deterem sobre detalhes de composição da obra, o que é excelente. Analisa-se, por exemplo, um trecho do depoimento da mãe:

“Toda a sequência começa com os jogadores no paintball posando para a câmera. São filmados de frente, com os fuzis de brinquedo em punho, óculos e capacetes de proteção, coletes de segurança. Em voz over, a mãe lamenta : ‘Só quem sabe o que é a dor é quem passa pelo que eu estou passando. Ninguém tem ideia do que estou passando. Ninguém. Só. Era meu filho, meu único filho que eu tinha. Tiraram a vida do meu filho, sem dó nem piedade. Eu só queria justiça. Queria que alguém fizesse alguma coisa. Pelo amor de Deus !’ // O combate é acompanhado pela música do Pato Fu, cuja letra diz : “Hoje as pessoas vão morrer/ Hoje as pessoas vão matar/ O espírito fatal/ E a psicose da morte estão no ar”... Só quando a mãe clama por Justiça é que vemos a imagem da família”.

Essa seria, creio, uma sequência em que o cinismo fere a ética.

Pergunto: se, em vez do doloroso depoimento ‘over’ sobre o circo do paintball, tivéssemos a mãe falando ‘in’ num ambiente que não fosse um abstrato fundo infinito mas, por exemplo, a sua residência, se a câmera se mantivesse quieta, haveria alguma objeção? Acredito que não, a dor da mãe seria respeitada, a compaixão do espectador poderia se exercer sem perturbação. Seriam assim restituídos o discurso da lamentação (“a mãe lamenta”, conforme o texto) e o discurso do consenso. E assim não haveria problema. Mas assim não existiria JESUS NO MUNDO MARAVILHA, nem o furor do texto de César Guimarães e Cristiane Lima.

Eles foram excelentes espectadores, melhores do que eu: eles são os espectadores escandalizados.

Deve se acrescentar que o texto de César Guimarães e Cristiane Lima aborda uma questão essencial que foi pouco explorada ou até mesmo silenciada, a saber a participação corporal de Cannito no filme.



Escrito por Jean-Claude Bernardet às 13h44
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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Debate sobre ética em Jesus

Depois que o Jean Claude Bernardet escreveu elegendo o "Jesus no mundo Maravilha" como uma referencia inevitável ao documentário brasileiro, ouve vários outros criticos que se mobilizaram para discordar dele e detonar o filme.
Criticas muito bem elaboradas alias.
Eles até inventaram conceitos novos (como a montagem cinica) e questionaram até mesmo minha ética pessoal.
Pessoalmente acho eles não estão debatendo ética. Estão tendo impor uma moral. No caso uma moral meio católica. E acho que eles confundem ética com etiqueta. Etiqueta é a etica da elite, a etica do bem educadinho (quem analisa bem isso é Eugenio Bucci em seu livro sobre Etica).
Mas isso é opinião minha. Os artigos são otimos e o fato é que o filme serviu também para isso: provocar um debate sobre ética em documentário e na arte brasileira.
Um debate que pode e deve continuar.
Pois acredito que a turma do bom mocismo em documentário esta´muito hegemonica e costuma acusar todos os que não concordam com eles de antiéticos. Isso tem - na minha opinião - limitado a livre expressão e a criatividade no documentário brasileiro.


Aqui no blog tem o artigo do Jean Claude e os artigos academicos em respostas.


Quem viu o filme e tiver interesse no assunto leia abaixo e comente para aquecer o debate

abraços
Newton

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Bernardet consagra "Jesus..."

Jean Claude Bernardet escreveu uma resenha sobre "Jesus no Mundo Maravilha" em seu blog. (www.jcbernardet.blog.uol.com.br). Não posso negar que para mim isso é objeto de grande orgulho. O primeiro livro que li sobre cinema foi de Jean Claude e era sobre Cinema e História. Eu dava aula de História e descobri esse livro. Fui cada vez mais para cinema, sempre influenciado por sua obra. Em documentário o livro "Cineastas e Imagens do Povo" foi fundamental em minha formação.
Segue a análise dele para o "Jesus no Mundo Maravilha"

Jesus no mundo maravilha

Jesus no mundo maravilha é um filme alegre e divertido. Talvez seja este o seu maior pecado.
Quando acabei de assistir a Jesus no mundo maravilha estava atônito. Numa grande perplexidade. O casal cujo filho foi assassinado por um policial, policiais expulsos da PM por, digamos, comportamento irregular, um ex-PM que confessa mais de 80 mortes. São temas graves e urgentes que pedem tratamento sério: todos nós somos contra a violência e a arbitrariedade da polícia, e esperamos contra ela um discurso ao qual possamos aderir, um discurso consensual.
Ora, não é o que acontece. Jesus no mundo maravilha é um docufarsa. E isto é chocante e bagunça aquilo em que acreditamos. Declarações favoráveis à pena de morte acompanhadas por uma alegre marchinha de Mozart ou a trilha de western-spaghetti e mais simulações engraçadas (ou espantosas), e brincadeirinhas de montagem e mais uma moralidade estupefaciente para encerrar o filme como se encerra uma fábula: é um escândalo. A estética do escândalo tem a virtude de nos obrigar a repensar os nossos sistemas de valores (cinéticos e outros), a nos repensarmos a nós mesmos. É vivificante como uma ducha fria.
Este filme expressa uma sociedade que não acredita em seus valores, que não acredita em suas instituições. Basta ver como são tratados os engravatados de alguma ONG ou comissão de direitos humanos. É duro de engolir: Jesus no mundo maravilha é a expressão de uma sociedade que entrega a proteção de suas crianças a assassinos.
Com suas simulações, paintball, cavalinhos de pau que relincham, com todos os seus artificialismos – como reunir num parque de diversões os pais do adolescente assassinado com ex-policiais expulsos da PM, incluindo um pastor evangélico – este filme é a expressão de uma sociedade do espetáculo. E esta sociedade é atravessada por um olhar melancólico.
De duas uma: ou ignoramos a existência deste filme (e aí tudo bem), ou não a ignoramos. Se não a ignorarmos, Jesus no mundo maravilha passa a ser uma referência inevitável no panorama atual do documentário brasileiro.

"Pergunte aos universitários"

"Jesus no mundo maravilha" é cínico?
Saiu mais um artigo metendo o pau no filme.(segue abaixo)
Parece que nós realmente conseguimos incomodar a ala dos documentaristas católicos. (he,he)
Ih... Meus deus. Será que eu fui cínico? Ou apenas irônico?
Sei lá. Nem sempre controlo. Agora fiquei em duvida.
Melhor perguntar aos universitários!
Mas brincadeiras a parte é um texto bem legal. Ri muito no começo, achei um pedaço meio difícil, mas acho o debate ótimo. Sempre gostei de debater com conservadores que querem impor sua ética a todos.
E sou sinceramente agradecido a todos que se dedicam a esse debate. E falo sério, sem cinismo. Nem ironia.

Juro mesmo. Juro. Dessa vez estou sendo sincero. Podem acreditar!!!!!!!!!!!!!!!!!

Vocês acreditam em mim? Juro que espero, do fundo de meu coração, que os documentaristas católicos acreditem em minha mais pura sinceridade e pureza de sentimentos ao dizer que não estou sendo cínico!
Acreditem em mim ao menos dessa vez!
E posso garantir uma coisa: o debate é legal, quem ler vai curtir.

Segue o artigo

CRÍTICA DA MONTAGEM CÍNICA
(disponível em: http://www.doc.ubi.pt/07/dossier_cesar_guimaraes.pdf)

César Guimarães e Cristiane Lima
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; Mestre em Comunicação Social pela UFMG
cesargg6@gmail.com ; crislima1@yahoo.com

Resumo: O artigo discute as implicações éticas e políticas geradas pela adoção do cinismo como figura estilística no documentário Jesus no Mundo Maravilha... e outras histórias da polícia brasileira (2007), de Newton Cannito.
Palavras-chave: cinismo, montagem, documentário.

“Os fantasmas perambulam somente por onde se cometeu uma má ação”
Sigfried Kracauer
Logo no início, após a inscrição do gênero do filme e do nome do autor, ainda com a tela em negro, ouvimos : “Minha mãe de criação foi vítima de latrocínio”. No plano seguinte um homem encena a postura de um vigia que perscruta o espaço em torno, cercado por um gradil amarelo, em uma pequena plataforma suspensa a poucos
metros do chão. Em seguida, apanhado em plano médio, seu gesto ganha outra conotação : ele está, ambiguamente, à espreita de algo ou na tocaia. Servindo-se de um boneco como anteparo, ele assume a posição de um atirador (vemos sua arma, mas não sabemos se é de verdade ou de brinquedo). Um sniper no parque de diversões,como se fosse um filme policial americano. (Snipers Paintball é justamente o nome de uma das locações do filme). Em replay, seu rosto surge repetidas vezes entre as barras de ferro amarelas, enquanto ouvimos, em voz over, o relato sobre a morte de sua mãe de criação. Ele narra como seu plano de vingança (esconder o revólver em uma Bíblia e matar o assassino da mãe em pleno Distrito Policial), inspirado em filmes de faroeste, se viu frustrado ao ser flagrado por um tira. Assim começa Jesus no Mundo Maravilha... e outras histórias da polícia brasileira (2007), de Newton Cannito. Descobrimos que foi esse desejo de “caçar bandidos” que levou este narrador a se tornar policial. Nessa nota biográfica (algo romanceada, sem dúvida, como todo romance das origens), a cena primitiva – que imantará o sujeito de modo irreparável – surge do interior do espetáculo, minuciosamente montada, com um esmero impecável (capcioso motivo de gozo tanto para o realizador quanto para o espectador). E será ao espetáculo que esse filme se renderá em diversas espirais que o abismam em um experimento no qual ele aprisionou os sujeitos filmados, e dos quais, por meio da montagem e de variados efeitos sonoros, ele tanto pode zombar e escarnecer soberanamente, quanto se aproximar sob a forma da adulação ou da simpatia ardilosa. Para coroar esse breve retrato de um dos protagonistas, ainda no início do filme, a câmara gira 360 graus em torno da figura do caçador de bandidos (que ostenta a arma acima do peito), em um movimento novamente ambíguo : a cena convoca, não sabemos se em chave paródica ou em tom de homenagem, a monumentalidade espacial dos westerns. Essa impossibilidade de se decidir por um sentido ou por outro, ambos mantidos um ao lado do outro, sem contradição ou exclusão, é que fará do cinismo a principal figura estilística do filme, como mostraremos mais adiante. De qualquer modo, o deserto ou o canyon – espaços que abrigam ações épicas – deram lugar a um prosaico parque de diversões na zona leste de São Paulo. Vale notar também que a grandiosidade da música do western foi trocada pelo rápido comentário brincalhão de uma cuíca. Mais à frente, a trilha do western-spaghetti reaparecerá emoldurando a aparição de um grupo especial da polícia, o GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), espécie de “Swat brasileira”, a cujos métodos (mais eficazes e menos violentos) será submetido Lúcio, o ex-policial, cujo relato abre o filme. Há um prazer compartilhado entre camaradas nessa demonstração de métodos policiais, e o realizador também se renderá a eles, em tom de brincadeira, quando se submete a um dos procedimentos dos ex-policiais (Lúcio e Jesus), que lhe batem nas palmas dos pés com um cassetete. Se no final do filme o faroeste dará lugar a um jogo de paintball que, em ralenti, metaforiza a caça aos bandidos, o universo dos brinquedos, a despeito da forçada comicidade dos efeitos sonoros saqueados de domínios distintos (canções infantis, Mara Maravilha, Mozart ou a banda pop Pato Fu) se transformará em uma fantasmagoria que só pode dizer – à maneira de um sintoma – de algo que permanecerá invisível : o lugar do morto. Precisamente, o lugar de Luis Francisco, filho de Lucimar Pereira e Eremito Santos, jovem negro morto gratuitamente por um policial em 2005. Aqui, os efeitos da montagem não poderão jamais exercer seu tripúdio à base de procedimentos metalingüísticos. A astúcia da reflexividade (tão convencida de seus efeitos críticos e provocadores), só pode empurrar o filme para um lugar do qual ele foge como o diabo da cruz, e no qual subsiste um traço do real (um único apenas !), mas que ele não suporta. É exatamente por isso que, logo após o depoimento de Lucimar Pereira, o filme se desembaraça da fala lutuosa da mãe (cujo rosto ele mal consegue fixar) e corta para o plano seguinte com o som de uma tuba, no cenário de um desfile de formatura de policiais em um quartel. Se esse filme pode ser “alegre e divertido” – como não teme em escrever Jean-Claude Bernadet (2009) – só pode ser naquele sentido em que divertir significa estar de acordo : “não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.135).
Jesus no Mundo Maravilha pretende abordar a cultura da corporação policial brasileira. Para tanto, constrói-se em torno de três núcleos : um primeiro, constituído pelos depoimentos de três ex-policiais que agora trabalham em um parque de diversões : Jesus, Lúcio (que abre o filme) e Pereira, todos exonerados da polícia militar por comportamento inadequado ; um segundo, baseado nos depoimentos emocionados de Lucimar e Eremito, pais de Luis Francisco ; e por fim, um terceiro núcleo, construído em torno da figura do palhaço Alexandre, que ganha relevo depois de insistentes tentativas de aparecer durante as entrevistas dos policiais. Alexandre é idealizador do Mundo Maravilha e planeja, por meio do documentário, se inserir no universo dos programas da TV.
O filme se vale de acentuado cinismo para criticar valores arraigados naquilo que o diretor chamou de “cultura policial”. Não se trata de ironia, pois o ironista pensa o contrário daquilo que diz, deixando entender um distanciamento deliberado entre o enunciado e a enunciação. Como caracteriza Vladimir Safatle, ironia e cinismo são atos de fala de duplo nível – cuja força performativa deriva “da distinção entre a literalidade
do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação” (Safatle, 2008, p.32) – mas há entre eles uma diferença decisiva. 1 A ironia afirma-se “não exatamente como uma operação de mascaramento, mas como uma sutil operação de revelação da inadequação entre enunciado e enunciação” (Safatle, 2008, p.32), mantendo
ainda a abertura a um reconhecimento intersubjetivo (pois podemos distinguir o hiato proposital entre a literalidade do dito e sentido guardado pela enunciação). Já o cinismo, diferentemente da ironia, embaralha e dificulta propositadamente os contextos de orientação para a determinação do sentido e coloca em crise o espaço comum que nos permitiria reconhecer que não se diz exatamente o que está literalmente dito. Safatle procura demonstrar que o problema do cinismo não pode ser tomado meramente como uma contradição performativa (isto é, uma contradição entre o que é dito e como é dito), e sim como uma enunciação que anula sua própria força perlocucionária (aquilo que o dito pode provocar ao ser enunciado), mas sem romper com os
critérios normativos. O cinismo, sublinha Safatle, é a forma de racionalidade “de épocas e sociedades em processo de crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida social” (Safatle, 2008, p.13). Nos termos de Peter Sloterdijk, retomados e comentados por Safatle, o cinismo é uma ideologia reflexiva ou uma falsa consciência esclarecida : “A noção de ideologia reflexiva, ou seja, de ideologia que absorve o processo de apropriação reflexiva de seus próprios pressupostos é astuta por descrever a possibilidade de uma posição ideológica que porta em si mesma sua própria negação ou, de certa forma, sua própria crítica. Já o termo aparentemente contraditório falsa consciência esclarecida nos remete (...) à figura de uma consciência
que desvelou reflexivamente os móbiles que determinam sua ação “alienada”, mas mesmo assim é capaz de justificar racionalmente a necessidade de tal ação (Safatle, 2008, p.68).”
Tentemos mostrar como essa racionalidade cínica se manifesta em Jesus no Mundo Maravilha, coisa surpreendentemente simples (e daí seu efeito de estupefação). Do ponto de vista normativo, o filme não adere explicitamente à defesa de que “bandido bom é bandido morto” nem defende a pena de morte ; ele apenas apanha as opiniões dos personagens que elegeu, exibindo-as e amplificando-as. No entanto, no modo como trata cada caso por meio dos procedimentos da montagem (e particularmente ao lidar com os personagens dos ex-policiais), o filme se põe inteiramente à vontade para expor aquilo que, do ponto de vista normativo, ele diz não contrariar (ou, pelo menos, não frontalmente). Não se trata de denegação, de forma alguma ; nada há
a esconder nem a mascarar. A falsa consciência está plenamente esclarecida quanto à sua alienação e a sustenta diante de nós, exposta abertamente. À primeira vista, o filme parece simplesmente acolher o depoimento e a perspectiva dos ex-policiais, mas ele está longe de se contentar com isso. A adoção do cinismo como figura estilística (e do seu efeito desorientador quanto à identificação do sentido em jogo) ganhará duas
terríveis implicações éticas e políticas : uma em relação ao sujeito filmado, outra em relação ao espectador. Vejamos como isso ocorre.
Em sua segunda aparição no filme, Lúcio surge lado de Jesus, no parque. Tratase de uma seqüência que se esmera na utilização do jump cut e dos recursos de montagem, em sua dimensão narrativa e plástica. Tentemos descrevê-la minuciosamente. O ex-policial começa por afirmar : “Que é que tem fazer com bandido ?”. Ele mesmo responde, fazendo o gesto com a mão de “pau nele !”. Nesse momento o filme se vale de um efeito sonoro que superpõe ao gesto de execução do bandido o som do disparo de uma arma (provavelmente o barulho amplificado da espingarda de pressão de um dos brinquedos do parque, com a qual Lúcio aparecerá em uma seqüência posterior, fazendo a mira no estande de tiro ao alvo). Intercala-se um plano dos brinquedos
do parque, acompanhado por um zumbido contínuo e prolongado (ou o som de uma sirene atenuada, obtido por meios eletrônicos ?). Lúcio continua, empolgado: “Você já viu um ex-bandido ? Não existe ! Ex-prostituta ?”. O sujeito filmado e aqueles que o filmam riem, irmanados. Nesse momento, alguém da equipe que filma acrescenta, no espírito da brincadeira : “Ex-presidiário existe !”. Mas Lúcio prossegue, em uma seqüência entrecortada pelo uso constante do jump cut : “A munição é muito cara (...) então você tem que fazer um bom uso dela”. Novamente intercala-se o plano dos brinquedos, acompanhado do zumbido. Surge a voz over da mãe de Luís Francisco : “Eu nunca ensinei meus filhos a roubar, nunca ensinei meus filhos a matar”. Passa-se novamente para Lúcio, que depois de criticar o gasto desnecessário com a construção de presídios, afirma : “onde pegar pegou, quem dá um, dá três” (aludindo aos disparos contra os bandidos). Outra vez o filme lança mão do efeito sonoro do disparo da arma, superposto ao gesto de “pau nele !”, repetido três vezes. (Não estamos muito longe daqueles efeitos sonoros utilizados pelas “videocassetadas” exibidas pela televisão). Depois do plano em que aparece mirando com a espingarda de pressão, Lúcio conta o caso de um seqüestro-relâmpago de que fora vítima. Em certo momento, ele descreve o seqüestrador do seguinte modo : “um bitelo de um crioulo, bem servido, né, adoro, né, tenho paixão, tenho paixão”. Passagem para os planos de crianças (negras !) que brincam em caminhõezinhos, acompanhados dos respectivos efeitos sonoros. Corte para o plano de Lúcio com a espingarda de pressão. Retorno para a cena filmada. Ao lado de Jesus, Lúcio faz o gesto que indica o tamanho do peito do “bitelo do crioulo”. “Um peito imenso”, ele diz. Nesse momento ouvimos a voz do documentarista, que diz : “Lindo para você, né ? Sorrindo...” Diante dessa “deixa”, em uma dramaturgia tão amigável, Lúcio logo emenda : “Me fura, me fura, né ?” (aludindo ao bandido que “pedia” para ser executado). Em seguida, auxiliado pelo efeito sonoro de um gatilho sendo puxado (que antecede, calculadamente, o gesto), ele narra, com gozo, como o disparo no peito do seqüestrador “bateu fofo, aquele barulhinho maravilhoso”. Ele
imita o barulho com a boca e o filme superpõe, outra vez, o barulho do disparo da arma, e logo passa para um plano no qual surge um garoto negro, de boné, em pé, ao lado dos brinquedos. É verdadeiramente obsceno esse construtivismo que vincula o relato da execução de um “crioulo” à aparição das crianças negras que brincam nos caminhõezinhos e do jovem negro com o boné ! (Somente o cinismo permite esse tipo
de associação paradoxal !). O filme quer nos indicar que elas serão mortas em um futuro breve, ainda que inocentes ? É por isso que os planos dos brinquedos são animados fantasmaticamente por um zumbido fúnebre ? A desaceleração da imagem –em alguns planos em que aparecem as crianças se divertindo nos brinquedos – já é o indício de que a morte ronda por perto ? Mas nada disso o filme pode admitir, logo ele, tão esclarecido. É por isso que essa seqüência termina com o riso, quando Lúcio dramatiza a fala do seqüestrador prestes a ser morto :
-“Você vai me matar ?”
-“Você duvida ?”
Todos riem, inclusive a equipe que filma. “É para rir também ?” – pergunta-se um espectador atônito. Talentoso e virtuoso aprendiz das estratégias do espetáculo, o filme tem o timing dos programas televisivos (de auditório ou de entrevistas) que preparam a irrupção do riso programado da claque.
Logo após ressurge a fala da mãe de Luís Francisco, que reivindica : “Cadê a sociedade ? Cadê a autoridade ?” Ao seu modo, o filme responde à mãe ao passar para o próximo plano, que se abre com o parque onde Lúcio e sua família (e também o realizador !) se divertem nos brinquedos, embalados (graças à montagem) pelo refrão da música cantada por uma conhecida apresentadora de programas infantis da televisão, Mara Maravilha. “Maravilha é ter Jesus no coração”, diz a letra. Ao desamparo da mãe o filme responde simples e brutalmente com a derrisão, recurso que se espalha pelas seqüências como um gás venenoso, tal o desprezo do realizador pela fala dos sujeitos filmados. Porém, a despeito de tanto riso forçado (o que torna o espectador um refém do experimento conduzido pelo filme), de tanta vontade de colar e associar tudo pela montagem, evitando-se toda fratura, toda cisão de sentido, esses efeitos, tão estudados, não darão conta nem de exorcizar nem de conjurar algo que assombra o filme em uma dimensão que ele ignora completamente.
Tudo se passa como se o medo expresso por uma das filhas do ex-policial Jesus – o de que o pai um dia volte morto do seu trabalho de segurança – retornasse para assombrar o parque de diversões.
Em uma cena ainda no início do filme – uma das poucas não retalhadas pelo uso histérico do jump cut – a voz do ex-policial se embarga diante do temor da filha pequena). Não será por isso que, mais adiante, veremos Jesus brincar melancolicamente em um dos brinquedos ? Não seria ele também assombrado pela morte, a despeito da proteção divina (invocada diante do temor manifesto pela filha) e da arma que porta ? (Logo após o plano no qual o ex-policial se diz protegido por Deus, para acalmar a filha, o filme mostra-o com uma arma, preparado para iniciar seu dia de trabalho). Esse desalento de adulto a brincar em um balanço exprime bem mais do que a tristeza de ter sido expulso da corporação policial. Como inúmeros filmes já nos
mostraram, o horror que surge em meio a um parque de diversões se deve ao fato de que ali os brinquedos (até então inanimados ou apenas funcionando como artefatos mecânicos) só ganham vida para trazer a morte aos que os experimentam 2. Prova de que mesmo uma montagem tão astuta como a desse filme encontra seu inconsciente, seu impensado. Como Cezar Migliorin bem lembrou, em uma carta aberta de extraordinária lucidez, destinada ao realizador de Jesus no Mundo Maravilha, o parque de diversões, tão presente nos filmes expressionistas, era o lugar “onde conviviam os sonâmbulos – aqueles que, para Kracauer, serão responsáveis pela manutenção das máquinas de morte nazistas – e os fascistas promotores da infantilização que no parque encontra possibilidades infinitas para o caos dos instintos” (Migliorin, 2009, p. 78).
No filme de Cannito o parque de diversões é o locus de um experimento controlado. Ali os sujeitos filmados são convidados a interagir entre si e com os brinquedos, pondo em cena suas próprias crenças e valores, inseridos em uma mise en scène que o documentarista planejou meticulosamente. Revezando entre os papéis de algozes e de vítimas, os sujeitos filmados se debatem, inutilmente, nas malhas de sentido construídas pelo montador. Como buscamos argumentar, o filme se vale de uma aliança com aqueles que são filmados, para em seguida – de modo cínico – dizer deles algo que eles não sabem (ou não esperam) a seu próprio respeito. Isso vale tanto para os policiais quanto para o palhaço Alexandre, personagem que o filme explora
de maneira mais escarnecedora. Em Jesus no Mundo Maravilha, o realizador se alia aos sujeitos filmados para depois confrontá-los pelo jogo de sentidos criado pela montagem. Aparentemente, o mérito provocador do filme, ao se valer dessa aliança (traída sistematicamente pela montagem), consistiria na inversão do tratamento que
ele concede aos temas que elegeu, como acredita Bernardet :
“São temas graves e urgentes que pedem tratamento sério : todos nós somos contra a violência e a arbitrariedade da polícia, e esperamos contra ela um discurso ao qual possamos aderir, um discurso consensual. Ora, não é o que acontece. Jesus no mundo maravilha é um docufarsa. E isto é chocante e bagunça aquilo em que acreditamos. Declarações favoráveis à pena de morte acompanhadas por uma alegre marchinha de Mozart ou a trilha de western-spaghetti e mais simulações engraçadas (ou espantosas), e brincadeirinhas de montagem e mais uma moralidade estupefaciente para encerrar o filme como se encerra uma fábula : é um escândalo.” (Bernardet, 2009, s/p). No entanto, para que esse efeito seja alcançado, o documentarista permite (e até mesmo estimula) a performance dos ex-policiais, exibindo ações e expressando opiniões que o filme, aparentemente, pretende criticar ou condenar. Mas isso não é feito de maneira aberta em relação àqueles que se deixam filmar. Na frente deles, na circunstância da tomada, o filme nunca propõe o conflito ; ao contrário, os ex-policiais entrevistados parecem bastante à vontade em falar com o documentarista,
e este se esforça em inflar o imaginário deles. Isso permite a Lúcio admitir, sem constrangimento, que já matou entre oitenta e cem pessoas. Já um outro ex-policial, ex-cabo do corpo de bombeiros e hoje proprietário de uma churrascaria, defende a pena de morte enquanto se farta de carne. Nessa passagem, o filme exibe uma de
suas muitas “piadinhas sonoras” : assim que o ex-policial defende a amputação de membros dos criminosos como forma de punição, o filme destaca o som da faca que raspa o metal do espeto do churrasco.
Em relação a Alexandre, o filme se vale de procedimentos semelhantes. O rapaz conquista espaço no documentário de maneira inusitada e, de certa maneira, bastante ingênua. Ele acredita que o filme lhe renderia uma boa publicidade e, quem sabe, uma inserção nos programas de televisão. Suas expectativas são enormes. Diante do realizador que lhe cede espaço, Alexandre não perde a oportunidade de exibir o seu “talento”, desempenhando não apenas seu personagem, mas também sugerindo à equipe um ou outro aspecto em relação ao próprio documentário. Ele reclama de ter de ficar empurrando brinquedos, “de fazer cinquenta vezes a mesma coisa”. “Não é legal fazer papel de retardado mental. E eu não sou retardado”. “Não ?”, retruca Cannito, como se discordasse. Em seguida, o filme o exibe saltitando em uma cama elástica, ao som de efeitos sonoros típicos dos desenhos animados. Alexandre chega mesmo a criticar a “falta de criatividade” do diretor, por se apropriar indevidamente do nome Mundo Maravilha, inventado por ele. No entanto, o filme não poupa momentos em que o espectador pode rir daquele que é filmado, como no momento em que ele afirma “eu me acho um artista, um jovem muito talentoso”. Alexandre faz papel de palhaço – e não apenas literalmente. O filme zomba dele, explicitamente, e mesmo quando registra seu protesto, é para melhor “sacaneá-lo” (para permanecer no vocabulário do qual o filme se serve), expondo-o ainda mais. Ao que parece, a sutileza do procedimento crítico reside em dar a corda para que os outros se enforquem. Ou então, nas palavras certeiras de Migliorin :
“O filme se interessa pelo palhaço e ele tem interesse em estar no filme, mas, quanto mais ele se submeter à lógica da fama, do estrelato e das celebridades, melhor para o filme. O filme deve parecer poderoso, deve parecer um filme de ficção, deve se confundir com a própria mídia que Maravilha deseja. Jesus no mundo maravilha precisa parecer o que não é para que Maravilha esteja ali da maneira como aparece. Com Lúcio, o ex-policial, e com o filme, o palhaço Maravilha se torna a vítima” (Migliorin, 2009, p.82).
Estamos aqui no núcleo das questões que o filme suscita escandalosamente (ele não saberia fazê-lo de outro modo, pois a sua lógica é a do espetáculo). Trata-se, afinal, de um filme cuja escritura simplesmente duplica e reforça as mises en scène (as narrativas, as representações) que animam a vida social. Sua montagem soberana, indiferente a tudo e a todos, é na verdade uma serva das representações sociais estabelecidas. Diante disso, gostaríamos de indicar algumas implicações éticas e políticas dessa tradução do cinismo em procedimento estilístico.
Se recorrermos aos quatro sistemas éticos que Fernão Ramos delineou para o campo do documentário – feitos da inter-relação entre a circunstância da tomada (quando se confrontam quem filma e quem é filmado) e os efeitos discursivos e narrativos produzidos pela montagem – veremos que o filme de Cannito se enquadra no
modelo que o autor denomina interativo/reflexivo. Ele se distingue pela “assunção da construção do enunciar”, quando “o modo de construir e representar a intervenção do sujeito que enuncia” torna-se o modo constitutivo do filme, que o explicita tanto na adoção de procedimentos interativos no momento da tomada, quanto nos recursos de mixagem e de montagem (Ramos, 2008, p. 37). Para Ramos, esse assunção ou exibição ao vivo das articulações construídas pelo discurso é o que permite ao documentário “jogar limpo” (segundo a expressão utilizada pelo autor).
Quanto a isso, portanto, o filme de Cannito joga limpíssimo, tal o grau de reflexividade e os numerosos procedimentos metalingüísticas dos quais se serve. Sob esse aspecto, por conseguinte, ele não contraria o campo normativo do documentário. E o que dizer então das aparições do próprio realizador ? Ele se revela à vontade no almoço na pizzaria (até olha para a câmera) quando o seu proprietário defende a pena de morte ; submete-se docilmente aos golpes de cassetete que Jesus e Lúcio lhe aplicam na sola dos pés ; ri dos feitos de Lúcio ; e como se não bastasse, participa também da batalha de paintball que encerra o filme. Nessa batalha, o realizador se imola ou se sacrifica simbolicamente no cenário de um filme de ação, assassinado pelos policiais
que com ele brincam, e sua morte é filmada em câmera lenta. Estamos diante de um filme inteiramente esclarecido acerca dos seus procedimentos interativos no momento da tomada. Outra vez, o campo normativo não é transgredido.
Tudo correria às mil maravilhas se as intervenções na montagem não funcionassem como um desmentido – mas que não desmente de todo, este é o seu charme crítico – aquilo que o filme alcança no momento da inscrição verdadeira, quando a máquina e o corpo filmado compartilham uma duração (não importa se o que está no centro da representação é explicitamente encenado). Podemos dizer que, do ponto de vista das suas ambições críticas, o filme promove um jogo duplo : se o realizador não hesita em interagir com os sujeitos filmados e se expor cinicamente – sendo agressivo com o palhaço, camarada com os ex-policiais – no plano da montagem ele simplesmente tira o corpo fora. Sendo o filme tão consciente de sua autorreflexividade, não entendemos porque o diretor tirou o corpo fora (literal e simbolicamente) do encontro com os pais do garoto morto pela polícia, que aparecem em um estúdio de fundo branco, neutro, deslocalizados. De todo modo, de uma forma ou de outra, o realizador se desimplica da cena do encontro filmado para garantir o funcionamento “experimental” do seu filme, no qual os personagens foram transformados em figurantes-cobaias de uma máquina retórica audiovisual. Vejamos a seqüência final do filme, passagem que exibe esse funcionamento cínico do dispositivo de modo aterrador, quando se dá o encontro entre a família do jovem assassinado e os ex-policiais.
Com exceção dessa cena, em todo filme o casal aparece em um ambiente similar a um estúdio, isolados de outro contexto que não o próprio documentário, sem interagir com outros sujeitos. No parque, ao contrário, a família é colocada no meio de uma cena preparada para que eles assumam o papel central. Essa cena é antecedida por uma cruel brincadeira de montagem. Vemos e escutamos a mãe que, mergulhada no
sofrimento, narra que, quase tomada pela loucura, se vê chamando pelo filho morto : “Vem filho, vem até a mãe... Vem falar com a mãe... É uma saudade muito grande e ninguém tem idéia disso (...) Ver meu filho caído...”. Logo após essa frase pronunciada em pleno pathos da perda, o filme, de forma cortante, dispara o efeito sonoro do tiro, e exibe o plano de uma criança que rola pela rampa de um brinquedo, um escorregador
de plástico. Em seguida vem um plano com a imagem embaçada, na qual identificamos um dos brinquedos do parque, como se visto do chão, acompanhado do som grave e contínuo, que depois dá lugar a um outro, agudo, um guinchado (ou uma voz de criança distorcida na mesa de edição ?). Não poderia ser outra coisa : trata-se da
visão subjetiva de um agonizante, baleado mortalmente.
Depois desse choque preparado deliberadamente para atingir (é este bem o termo) o espectador, passa-se suavemente para os sons da caixinha de música que abrem a canção da banda Patu Fu e para o plano que mostra os combatentes do jogo de paintball. O diretor do filme está entre eles. Logo em seguida veremos a mesa que reúne os policiais, a família, os advogados defensores dos Direitos Humanos e também o
palhaço Alexandre – organizados à maneira de um tribunal informal, acompanhando, inclusive, de um pequeno júri, espremido pelos tabiques do paintball. Vemos a equipe que filma, até os microfones shot gun. Mais ao fundo, um grupo de pessoas assiste ao espetáculo armado.
Esse encontro poderia ser um grande momento do filme, pois ali os valores dos policias são criticados com contundência : é o momento em que família poderia “vingar” seu filho, defendê-lo, “esfregar” na cara do inimigo aquilo que o espectador – e talvez o próprio documentarista – pensa de grande parte de suas ações. Os policiais, em contrapartida, estão impedidos de pôr em cena seus imaginários ; pois ali eles não poderiam zombar de suas vítimas nem se vangloriar de seus feitos – não diante da dor do outro. Poderia ser o momento de um verdadeiro conflito – e não é à toa que Cannito escolheu justamente a locação do paintball para este encontro inusitado.
No entanto, a força desse encontro logo desaparece. Tudo é esquartejado e montado paralelamente com imagens de um estranho combate no qual equipes competem entre si, alvejando seu adversário com tinta. No documentário, os policiais encenam toscamente um filme de ação, atirando uns nos outros, enquanto ouvimos a trilha sonora típica de um filme de faroeste. Efeitos sonoros de tiros e sirenes de viaturas são acrescentados, neutralizando, em larga medida, aquilo que é dito em voz over. Toda a seqüência começa com os jogadores no paintball posando para a câmera. São filmados de frente, com os fuzis de brinquedo em punho, óculos e capacetes de proteção, coletes de segurança. Em voz over, a mãe lamenta :
“Só quem sabe o que é a dor é quem passa pelo que eu estou passando. Ninguém tem ideia do que estou passando. Ninguém. Só. Era meu filho, meu único filho que eu tinha. Tiraram a vida do meu filho, sem dó nem piedade. Eu só queria justiça. Queria que alguém fizesse alguma coisa. Pelo amor de Deus !”
O combate é acompanhado pela música do Pato Fu, cuja letra diz : “Hoje as pessoas vão morrer/ Hoje as pessoas vão matar/ O espírito fatal/ E a psicose da morte estão no ar”... Só quando a mãe clama por Justiça é que vemos a imagem da família no parque. Sempre alternadamente, vemos a conversa no parque, seguidas de trechos do combate de brincadeira, nos quais policiais se arrastam pelo chão, escondem se atrás de tambores, de carros velhos e de outros obstáculos que lhes servem de barricada.
O pai da vítima diz que as testemunhas do assassinato foram ameaçadas de morte. Lúcio, como o bom PM que foi, logo defende a corporação, atribuindo a um único policial a responsabilidade por aquele crime, como se esta não fosse prática corriqueira da polícia, como se ele mesmo nunca tivesse desempenhado atitudes semelhantes (das quais poucos minutos antes ele parecia se orgulhar). A mulher se revolta. O pastor aproveita a “deixa” para pregar, sugerindo à família que perdoe o carrasco de seu filho. Mas o pai retruca : “eu sei lá porque você está com essa bíblia aqui ? De repente, você cometeu um erro grave e se arrepende”. O espectador certamente concordaria, pois o filme já havia apresentado a história do pastor, que administrava penas de morte por conta própria.
A mãe também contesta : “Não vou perdoar porque a dor é minha. Não adianta ninguém pedir. Não vou perdoar !”. O pai, acenando com as mãos (como se apontasse o dedo para o céu), conclui : “E ele vai prestar contas, um dia, pra todo mundo ver”. Sobre essa última fala é acrescentado um efeito sonoro parecido a uma badalada de sino, que concede à fala um tom profético (aproximando-o, em alguma medida, do discurso do pastor) e destituindo-o (paradoxalmente, outra vez) do sentido de reivindicação por Justiça.
A cena termina com a seguinte fala de Alexandre, que soa como um veredicto, em coerência com a cena montada : “Uma pessoa trabalhadora, uma pessoa honesta, uma pessoa competente não merece ser morta assim de graça. Quem tem de morrer é bandido e não um cidadão de bem”. E em seguida, lemos os créditos finais. A fala de Alexandre coroa o filme com uma “moral da história” – bastante simplista, é verdade – mas que corrobora tanto a versão policial dos fatos (“bandido tem mesmo que morrer”) quanto a da família (“gente honesta não merece morrer assim de graça”). Como explicara Lúcio, existem sempre três versões para os fatos (“a minha, a sua e a real”). O filme não se decide por nenhuma delas : permanece em cima do muro, sem problematizar sequer essa definição de bandido – palavra tão corriqueira entre alguns de seus protagonistas. Ora, poderia o filme não se decidir em relação a isso ?
Se o filme pode ser considerado um escândalo (como escreveu Jean-Claude Bernadet) isso se deve ao fato dele negar-se a assumir uma postura ética. Ao mesmo tempo em que a violência é passível de crítica, ela se torna, para o filme, motivo do riso e do gozo que se quer impor ao espectador. A escolha do cinismo como figura estilística acaba por conferir ao filme esse caráter dúbio (que não se decide entre a crítica e o escárnio). Frente à família do jovem morto, poderia o filme fazer-nos rir ? Até que ponto ele pode explorar o sofrimento do luto ? Poderia, o filme, se comprazer com a exibição dos “grandes feitos” dos policiais ? O tema com o qual o filme lida merece um tratamento mais sério, sem dúvida, mas o filme peca menos por isso do que pelo fato de se valer de uma tênue aliança com os sujeitos filmados para, logo em seguida, achincalhá-los. Tudo se transforma num experimento audiovisual articulado pelo realizador-montador. Nenhuma maravilha habita esse mundo retratado por Newton Cannito, apenas o horror, aquele que não se suporta, e que aparece, forçadamente, travestido de brincadeira.
Por obra de uma estratégia astuciosa (que se quer inteiramente esclarecida quanto ao uso de procedimentos reflexivos tanto no momento do encontro filmado quanto no manejo da ilha de edição), em Jesus no mundo maravilha somos confrontados a um filme cuja crueldade, calculada, faz do jogo do sentido um verdadeiro tormento, com balizas estrategicamente dispostas. Com a liberdade do seu julgamento crítico e a potência dos seus afetos, o espectador deve se preparar para o pior.

Doc On-line, n.07,Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 6-16
1. Devemos a Ilana Feldman esta indicação. Cf.Vladimir Safatle, Cinismo e fa-
lência da crítica. São Paulo : Boitempo, 2008.
2. Como exemplo, citamos o belíssimo Disneyland, mon Vieux Pays Natal (2000),
de Arnaud des Pallières, analisado por Jean-Louis Comolli (2008).



Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985.
BERNADET, Jean-Claude, “Jesus no mundo maravilha”.Publicado originalmente em : http ://jcbernardet.blog.uol.com.br. Disponível em : http ://jesusnomundomaravilha.blogspot.com. Consultado em :04/10/2009.
COMOLLI, Jean-Louis, “O desaparecimento :Disneyland, mon vieux pays natal, de Arnaud des Pallières” in _____. Ver e poder, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008. pp. 314-320.
MIGLIORIN, Cezar, “Jesus no mundo maravilha, uma carta aberta ao realizador Newton Cannito” in Devires - Revista de Cinema e Humanidades, V.5, n.2, Belo Horizonte, jul/dez. 2008, pp. 73-83.
RAMOS, Fernão Pessoa, Mas afinal... o que é mesmo documentário ? São Paulo : Senac, 2008.
SAFATLE, Vladimir, Cinismo e falência da crítica, São Paulo : Boitempo, 2008.

Filmografia
Disneyland, mon Vieux Pays Natal (2000), de Arnaud des Pallières.
Jesus no Mundo Maravilha... e outras histórias da polícia brasileira (2007), de Newton Cannito.