sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Jesus no Terra Magazine


Entrevista com o diretor Newton Cannito feita pelo Daniel Bramatti.

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Ou lendo abaixo:

Em filme, ex-policial diz ter matado mais de 80

Sexta, 21 de setembro de 2007, 15h45


Daniel Bramatti

Jesus, Lucio e Pereira, ex-integrantes da Polícia Militar de São Paulo, falam abertamente sobre tortura e extermínio de "bandidos". Lucio diz até ter perdido a conta de quantos já matou, mas estima terem sido "mais de 80 e menos de 100". Pereira, evangélico fervoroso, destaca que sempre dava um minuto para que suas vítimas rezassem antes de matá-las.

Os três são os personagens principais de "Jesus no Mundo Maravilha", documentário que representa o Brasil na série DOCTV Ibero-América e que será exibido nesta sexta-feira, às 22h40, pelas emissoras da rede pública de TV, entre elas a TV Cultura e as TVEs.



O filme é um mergulho na mentalidade justiceira - e nada legalista - da polícia brasileira. Por coincidência, será exibido no mesmo dia em que a Folha de S.Paulo revela indícios da existência de um grupo de extermínio formado por policiais militares em Osasco e que O Estado de S.Paulo informa que a PM paulista mata um civil por dia.

"Eles os policiais sempre acharam que a lei era uma coisa ineficaz e que, para resolver a questão da violência, são necessários heróis que se sobreponham à lei. Nisso, aliás, eles são como personagens de cinema. São como Charles Bronson, Batman e outros tipos cinematográficos. Todos querem justiça. Mas justiça além da lei", disse o diretor do documentário, Newton Cannito, em entrevista a Terra Magazine.

O "mundo maravilha" do título é um parque de diversões onde dois dos ex-policiais atuam como seguranças. Neste cenário, armas aparecem como brinquedos - o que pode ser lido como uma metáfora da falta de seriedade com que o país encara a questão da segurança.

Newton Cannito, um dos roteiristas da série "Cidade dos Homens", arranca as declarações mais polêmicas de seus entrevistados ao criar uma situação de camaradagem com eles, que os deixa totalmente à vontade. O tom crítico do filme é dado pela edição, que contrapõe o discurso pró-extermínio de bandidos com o lamento de pais que tiveram um filho assassinado por um PM.

Leia a seguir a entrevista:


Como você descobriu os personagens do documentário?
Via pesquisa de casos de ocorrências policias com vítimas. Entrevistamos vários policiais na ativa. Um deles chegou a nos mostrar um book de fotos dos corpos que ele matava. Tínhamos gravado isso, ele queria falar e dar entrevista. Mas, se falasse, seria demitido da Polícia Militar. É que a corporação, num gesto hiperdemocrático, impediu todo policial da ativa de dar entrevista para o filme. Aí tivemos a idéia de entrevistar policias exonerados. Um nos levava a outro. Jesus era amigo de um dos que entrevistamos. Lucio trabalhava com ele no parque. E assim por diante. O que fiz foi compor um leque com uma variedade de personagens e perfis diferentes entre Lucio, Pereira e Jesus.


Qual foi a reação dos ex-policiais ao ver o filme?
Muitos que viam o filme antes deles diziam que eles odiariam. Eu estava na dúvida do que eles achariam. Mas eles adoraram. Lucio, por exemplo, disse que fui correto com ele. Só botei o que ele disse. Eles percebem tudo. Lucio disse que fiz duas coisas que ele não gostou muito. Uma é um corte em que, logo depois de ele dizer quantas pessoas matou, entra Eremito (o pai da vítima) e pergunta: "Um policial desses é formado?". Ele percebeu que esse corte induz o público a pensar que Eremito falava dele. Outra coisa é que a primeira parte do filme dá a impressão de que foram Lucio e Jesus os algozes do filho de Lucimar, o que não é verdade. Mas ele não achou isso grave, pois depois o filme explica que não foram eles.

Resumindo: eles entendem tudo. Entendiam desde o início que estavam cedendo sua imagem e seus personagens. E sabiam que o problema seria a edição. Mesmo assim decidiram mostrar sua imagem com coragem e contra a vontade de advogados e família. Pois eles têm muita vontade de contar sua história. Eles confiaram em mim e gostaram do resultado.


"Hoje, infelizmente, o Estado não quer que a gente faça nada além do que está na lei." Dita por um dos ex-policiais, talvez essa seja uma frase-síntese do filme. Poderia comentá-la?
Sem dúvida, é uma frase-síntese que mostra como pensa a corporação policial. Ela surge de uma cultura de separação entre a polícia e a sociedade. O que me impressiona é que, ao virar policiais, eles se afastam de seus antigos amigos civis. Só têm amigos policiais. Isso tudo gera uma distância entre eles e a "sociedade". E entre eles e a "lei". Eles sempre acharam que a lei era uma coisa ineficaz e que, para resolver a questão da violência, são necessários heróis que se sobreponham à lei. Nisso aliás, eles são como personagens de cinema. São como Charles Bronson, Batman e outros tipos cinematográficos. Todos querem justiça. Mas justiça além da lei.


Você cria situações de camaradagem com os policiais, ri quando eles defendem tortura, por exemplo. Essa técnica de entrevista não cria um dilema ético?
Ao fazer cinema tem uma técnica chamada discurso indireto livre. Pasolini a definiu no cinema de poesia. Nela o narrador se contamina pelo objeto narrado. É o que fez Dostoievski em "Crime e Castigo", por exemplo. Ou Flaubert em "Madame Bovary". Essa contaminação é de todas as formas. Inclusive na entrevista. Sem dúvida eu me deixei contaminar pelo objeto. Foi intencional.

Algumas pessoas podem até pensar que o diretor é mau-caráter. Assim como alguns leitores podem pensar que Flaubert é realmente a Madame Bovary. Por mim, tudo bem. É o risco de tentar fazer arte. Não ligo que as pessoas pensem que o diretor não é bonzinho. Não é função do artista parecer bonzinho. Acho mais vantajoso ele expressar a sociedade contemporânea. Sinceramente, acho que consegui. Se as cenas em que a equipe se diverte com o policial incomodarem o espectador - como sua pergunta me induz a pensar que incomodou -, consegui meu objetivo. Pois apesar de o narrador ter aderido ao discurso dos personagens, o público não irá aderir. O público ficará chocado e terá uma postura crítica em relação ao discurso dos policiais militares.


Os policiais pró-tortura e esquadrão da morte reclamam de mudanças na polícia. Dá para concluir que algo está mudando para melhor?
Sim. Está mudando para melhor. Ainda há muito a ser feito, mas está mudando para melhor. A formação dos policiais tem melhorado, tem incorporado a fundamental disciplina de direitos humanos e tem tentado conter essa mentalidade de guerra.

Mas ainda há muito a ser feito. Particularmente não vejo por que a polícia continuar sendo militar. Ser militar gera a lógica de guerra, gera perseguições entre oficiais e cabos, gera isolamento da população civil que acaba levando a violência policial.

Há coisas a atentar também no que os policiais das antigas dizem. Eles dizem que agora as penalidades são tão grandes que isso acabou gerando uma nova geração de policiais burocráticos. Policiais que não vão à perifeira, pois lá tem violência. Policiais que vêem um bandido assaltar e desviam seu carro. Policiais que não querem ser policiais.

Não pesquisei o suficiente para saber a quantidade de policiais assim. Mas é uma questão importante. Não podemos confundir cuidado em relação ao direitos humanos com inação da polícia.


Um debate "direitos humanos X morte aos bandidos" é quase ridicularizado pela trilha sonora do filme. Foi essa sua intenção? É um debate inútil?
Não. É um debate fundamental. É a única saída. Infelizmente o debate sobre direitos humanos ficou restrito a poucas associações. Ele deveria contaminar toda a sociedade. Ele também não pode se misturar com ações de humanismo melodramático, como abraçar a Rocinha. Ou promover a "paz", de forma abstrata. O bom debate sobre direitos humanos não é manezinho . Não são os direitos humanos que aparecem nos estudantes da PUC do "Tropa de Elite". Esse grupo existe, mas é um movimento de direitos humanos bastante ineficaz. O bom movimento de direitos humanos deve saber que é importante prender e punir criminosos e deve procurar soluções eficazes para a política de segurança.
Quanto ao filme e à trilha: se a trilha sobe no trecho dos direitos humanos é pelo mesmo motivo de sempre. O filme é todo construído num diálogo, com o jeito como os policiais narram o filme. É como se a narração do filme fosse construída a partir do ponto de vista dos policiais. E eles acham esse debate inútil. Vamos ampliar esse debate.

Não é irônico que o filme seja exibido na TV no dia em que se revela a suspeita da atuação de um grupo de extermínio em Osasco?
Essa notícia mostra que, ao contrário do que a corporação fala, a polícia paulista continua matando. Com certeza os policias de meu filme não têm nada a ver com grupos de extermínio. Mas a cultura da corporação, que o filme retrata, continua causando fatos lamentáveis como esse.

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