quarta-feira, 5 de maio de 2010

ESCÁRNIO DA CRÍTICA CATÓLICA

Este texto é uma resposta ao artigo "Crítica da Montagem Cínica", escrito por César Guimarães e Cristiane Lima, publicado no site português DOC ONLINE (www.doc.ubi.pt). Como montador de Jesus no Mundo Maravilha, vejo-me intimado a escrever, já que boa parte do dilema envolve diretamente as operações que realizei, junto com a direção, na estruturação do filme.
Assim como Jesus no Mundo Maravilha contraria os mandamentos da parcela da crítica que o condena, o tom deste texto também contraria os protocolos da crítica, tanto da boa quanto da má. Estou cada vez mais convencido de que a crítica da crítica compreende o escárnio, o sofisma, o aforismo, o deboche e a má educação. Isto porque a meu ver o artigo em questão esforça-se, a partir de pré-concepções de cunho moral, em tentar provar que Jesus no Mundo Maravilha trata-se de uma monstruosidade anti-ética, um ovni abjeto e supostamente indesejado dentro do espectro daquilo que se habituou chamar de “documentário”. Trata-se de mais um capítulo da cruzada moralista da jovem crítica católica brasileira, que tenta a todo custo impor sua ética.
Em seu blog (http://jcbernardet.blog.uol.com.br/), Jean-Claude Bernardet, que é um dos defensores do filme, acredita que o documentário brasileiro contemporâneo passa por contradições profundas que são salutares. Então decidi contribuir, aprofundando ainda mais o fosso da diferença, escancarando os antagonismos. No ano passado tive a experiência de ler “Jesus no Mundo Maravilha, Uma Carta Aberta ao Realizador Newton Cannito”, de Cézar Melhoral (ou Milhorim, algo que o valha, não me lembro bem se é nome de remédio ou marca de fubá), e fiquei com uma preguiça danada. Lembro-me de dizer ao Newton que não estava interessado na discussão de fundo moral (por trás do refinamento da escrita doutoranda) que o texto levantava e que, sintomaticamente, começava com uma citação de Kracauer, que como seus seguidores sempre teve dificuldade em enquadrar os filmes dentro de suas teorias, nunca conseguindo encaixar a feliz diversidade do cinema em suas gavetinhas de preferência. Alguém já disse que é uma pena alguém tão inteligente e dedicado quanto Kracauer levar a vida toda a erigir um edifício só para dizer que preferia o realismo. Acho divertida a piada. Estamos falando de um tempo pré-Bazin (que, aliás, também era católico, porém bem mais inteligente)…


Mas o fato é que cansei de ficar apenas escutando a ladainha. Em situações e momentos como estes é preciso marcar mesmo posição, abrir frente clara de oposição e de rompimento, desmascarar os bons moços limpinhos e engomados, colecionadores de casacos, supostos defensores da ética, e que atualmente encontram-se entricheirados nas universidades em uma cruzada cristã pelo engessamento do documentário brasileiro. Isto precisa ser combatido, e rápido.
Meu texto pode parecer raivoso, mas seu tom desbocado é proposital, e de fundo filosófico. Tive este insight tomando um cafezinho aqui no Nicola, em Lisboa, frequentado no passado pelo sr. Bocage, que me faz também lembrar de Rabelais, Gregório de Matos, José Agudo e Rogério Sganzerla. Antes de mais nada, é bom deixar claro que pessoalmente não me ofendo com as tentativas neuróticas e desesperadas dos jovens acadêmicos católicos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, em fazer com que seus pontos de vista construam um campo hegemônico. Há tempos que ando cansado mesmo, destes clubes de eleitos que se auto-elegem para tentar impor suas hierarquias de gosto, sua ética e sua moral, no caso das mais esquemáticas. No fundo são motivo de riso, escancarado mesmo – uma piada! Só que alguém tem que começar a dizer que essa igrejinha não é dona da razão, como tenta se fazer supor, pois é preciso e vital que o documentário brasileiro supere de uma vez por todas esse mal de época.

Lembro-me que comecei a editar o Jesus no Mundo Maravilha antes das gravações terem terminado. Era início de ano, e um assistente já havia convertido todo o material que fora gravado em dezembro. Cheguei para visionar e organizar o material, e lembro-me que fiquei entusiasmado. Tudo me parecia ao mesmo tempo estranho e estimulante para um documentário. Chamava a atenção, sobretudo, aquilo que me pareceu um salto em relação ao primeiro documentário de Newton, “Violência S.A.”. Este salto residia no fato das operações irônicas de sentido presentes em “Jesus”, às vezes beirando o absurdo, estarem presentes na própria composição da imagem, dentro de cada quadro, aonde podíamos ver, por exemplo, policiais dando aulas de tortura e contando suas proezas de Charles Bronson paulistano em meio a um mundo colorido de brinquedos mecânicos e algodão doce. Por outro lado, em Violência S.A., que particularmente não me agrada - e já cansei de dizer isto ao Newton e ao Eduardo, co-diretor, acho que a voz over está muitos graus acima do tom farsesco adequado – as operações de ironia, cinismo e escárnio devem-se quase que totalmente ao uso da voz over; já em Jesus a voz over é dispensada, e a ironia, o cinismo, o escárnio e a avacalhação passam a se operar diante da câmera, através da câmera, através da atução direta do diretor no embate com a realidade, através da interação que sua personagem (de diretor bufão) realiza com as demais personagens e em sua combinação com a locação do parque.
Mas estava dizendo do início da montagem. Faltava ainda alguma coisa àquele material que visionávamos, pois com as transformações ocorridas no projeto em seu decorrer,, havia por parte do Newton o desejo intuitivo de fazer um documentário onírico com aquilo tudo. Naquela combinação explosiva de histórias violentas, personagens patéticas e performances apalhaçadas, enveredar pelo sonho e pelo pesadelo parecia-me também ainda mais perigoso e estimulante. Conversamos sobre materiais adicionais, que poderiam ser produzidos para, na articulação com o material já gravado em dezembro, construir afinal a composição onírica que Newton almejava. Lembro-me claramente de pedir-lhe algum material de apoio que fosse abstrato, um trabalho de câmera sobre o espaço do parque, sobre os personagens neste parque, um material que fosse mais plástico e menos descritivo, pois com o conjunto de imagens descritivas, funcionais e objetivas que tínhamos o tal onírico não poderia ser estruturado.
Alguém pode pensar que estas reflexões sobre as opções da direção podem soar estranhas vindas do montador, mas acredito que a montagem de um projeto como este não pode compreender apenas o trato da matéria virtual das imagens, dos sentidos que emanam delas e das articulações entre elas, do resultado estético dos embates da câmera com o real (amém!), mas também a reflexão e a discussão sobre as próprias decisões da realização em sua luta, dada no fio da navalha de uma operação arriscada. Sobretudo porquê estruturávamos o filme por um ponto de vista que, confrontado com nosso entendimento do mundo, parecia-nos grotesco e injustificável. Daí pergunto aos católicos: não se pode fazer um filme cínico para mostrar que o mundo é cínico? Quem é que vai mostrar a fuça autoritária e dizer que não pode?
Assim, nessa dinâmica entre direção e montagem, prensenciei o momento subsequente à ligação da Mãe da vítima ao Newton, superando o medo de falar sobre o caso e prontificando-se, afinal, a dar projeção a suas palavras dentro do projeto. Decidiu-se que ela seria gravada em estúdio, em fundo neutro, portanto fora do espaço do parque – não me lembro se houve outras conjecturas a respeito da escolha da locação para a mãe, poderia ter havido outras opções, mas sinceramente ainda hoje não vejo o que poderia ser mais adequado para o seu registro, levando em conta a intenção de preservá-la da colagem sobre o parque. O parque era o espaço da demência, da loucura e da alienação, não de quem teve o filho assassinado covardemente pela polícia. Penso hoje que ir até sua casa poderia ter sido perigoso, um perigo potencialmente residente no próprio espaço da realidade, que poderia por uma fresta adentrar a sala escura de nossos experimentos cínicos e escarnáticos, e que residiam na idéia sempre frisada por Newton de que o documentário deveria se construir sempre a partir do ponto de vista narrativo dos policiais. Evitar a realidade é um pecado na igreja do documentário? Que seja. Sob esse ponto de vista, omitir o espaço “real” em torno dos pais da vítima foi o que permitiu que o filme pudesse finalmente incorporá-los, ao mesmo tempo preservando a integridade pessoal da mãe e o traçado que o projeto, transformado radicalmente pela imposição do silêncio pela polícia (que proíbira os policiais envolvidos no caso de prestar declarações ao documentário), enfim descobrira.

Sobre o cinismo, uma coisa que sempre me parecia hilária, ao catalogar o material bruto que a certa altura me chegava quase que diariamente na ilha de edição, era o fato que NUNCA, NINGUÉM que aparecia no filme questionava por quê cargas d’água falava-se de tortura em meio a brinquedos; da doutrina evangélica num carrossel; de direitos humanos numa mesa mal improvisada em meio a um parque de diversões. É de uma ingenuidade genuinamente estúpida – sinceramente não há como não rir dos dignos representantes dos direitos humanos sentados no meio de um parquinho, repetindo as velhas ladainhas de sempre, como se fosse normal promover um debate em meio a brinquedos, e com um palhaço estúpido a andar de um lado para outro. Lembro ainda que trabalhei arduamente nesta sequência, para dar cabo satisfatoriamente de um certo “efeito blá-blá-blá”, imaginado pelo Newton, e que consistia na sobreposição das falas do debate, construindo a impressão de que todos queriam falar ao mesmo tempo, sem respeitar a opinião do outro. Aquela confusão toda foi completamente construída na montagem (perdoai!), pois é assim que entendíamos estilisticamente o que ocorre quando põe-se frente à frente burocratas e policiais para discutir o conceito de “direitos humanos”. Aparentemente, a etiqueta e a educação davam a impressão de que às vezes queriam se ouvir. Mas decididamente não estávamos interessados em etiqueta. Etiqueta, como Newton gostava de dizer durante a edição, é a ética da elite, do bem-educadinho. Discutir ética de verdade é mais embaixo.
Rimos e rimos muito na ilha de edição, e ainda hoje me cago de rir quando tenho o prazer de assistir a esta cena. Isso quer dizer que o filme é “contra os direitos humanos”? É assim que os educadinhos das universidades brasileiras preferem ver, para não trair suas teorias teóricas? Divirto-me com a paródia que fizemos, e com a lucidez de Newton em fazer um filme que critica tanto a polícia quanto os críticos da polícia, pois os críticos da polícia e os defensores dos direitos humanos estão presos em idéias e teorias que não se aplicam na realidade, que não lhes permitem atuar de maneira concreta sobre a complexa questão da segurança pública no Brasil. Ficam lá nas suas palestras, nas suas conferências, nos seus programas de televisão, sentados nas suas cadeiras enquanto o pau come na rua. Esses senhores têm o seu papel sim, importante, mas que é importante na sua pontualidade cotidiana, de ação concreta na assistência às pessoas que não têm defesa diante da violência corporativa, da violência do Estado. São necessários e assim são nobres, mas como teóricos são patéticos. Humanismo de academia não resolve. Ademais, é sempre bom lembrar que o documentário estava sendo construído a partir do ponto de vista dos policiais, que sequer suportam ouvir falar de “direitos humanos”, pois para os “direitos humanos” policial é apenas uma abstração, um signo maligno da ditadura, entidades sem existência física – como se também não fossem mais uns fudidos. Tá bem, mas o que você propõe afinal? – diria provavelmente algum furioso estudande - a anarquia? – Sei lá – responderia eu - não sou procurador do Estado, nem defensor profissional dos direitos humanos, e muito menos crítico, que dirá católico. Exigir esta resposta e esta proposição de um documentário, ou qualquer tomada de posição do mesmo a favor deste ou daquele, é puro equívoco. É um pensamento de rodapé. É até feio.

Diante de Pereira, o justiceiro evangélico, sentia um certo ódio (perdoai novamente!). Tive que me controlar um bocado diante da imagem deste homem, que levava suas vítimas covardemente para um matão na zona leste e as executava. Cresci na periferia e já havia topado tipos assim, e ouvido inúmeras histórias destes pés-de-pato. O pé-de-pato para mim é um personagem de infância, que habitava a noite de onde eu morava, trafegando encapuzado pelas ruas de terra em um Maverick negro, em baixa velocidade, arma no cinto, acompanhado de outros 4 justiceiros de bigode bem-feito, com dedos e olhos amarelos. Na periferia sentíamos ódio destas figuras, ficávamos indignados, e quando crescíamos frequentemente gostávamos da idéia de um dia poder fazer também vingança. É essa a lógica que se deseja e que acontece muitas vezes na periferia, a do olho-por-olho e dente-por-dente. No fundo nunca levei isto mesmo a sério, afinal fiquei vivo para poder exterminá-lo ao menos esteticamente. Seria incapaz de matar alguém fisicamente, em nome do que quer que seja, mesmo um assassino fardado, cínico e covarde como Pereira. Aliás, em termos de atuação dentro do documentário, Pereira leva o Oscar – proporcionou-nos uma autêntica cena de documentário clássico ao narrar sua conversão religiosa. É pecado avacalhar o espaço sacrossanto do documentário? Que seja. Gostaria apenas que alguém me dissesse o que é preciso fazer no Brasil para acabarmos de uma vez por todas com a lógica da patrulha.
Quanto ao palhaço, este impôs-se no filme. Impôs-se à equipe de filmagem, à direção e à edição. Confesso num certo periodo do trabalho que lutei contra este palhaço – sua articulação com o restante do material parecia-me ter que ser feita à forceps – era um aparente alienígena no projeto. Mas assim como os outros personagens, ele também estava interessado no filme, e queria tirar proveito da oportunidade: Pereira queria mostrar sua conversão e seu arrependimento, e pregar a palavra de Deus; Jesus queria mostrar como estava triste, e como queria seu emprego na polícia de volta; Lúcio queria fazer no cinema o papel do justiceiro destemido; a vítima queria justiça; e o palhaço queria aparecer na televisão. E para isso dispôs-se ao jogo, tanto que sua atuação passou a modelar-se com o decorrer das gravações, e isto era bastante visível no material – no processo, ele aprendeu por exemplo que era mais engraçado fazer papel de mau-humorado do que fazer suas habituais palhaçadas sem graça. E assim o fez.

No mais, falando genericamente sobre o trabalho, mudaria poucas coisas da montagem. Primeiro, tentaria diminuir drasticamente a voz over de Lúcio no início, e daria mais tempo às imagens inaugurais – há ali um problema de ritmo. E certamente montaria a sequência de Jesus caminhando pelo bairro, em seu dia-a-dia de segurança particular, de outra maneira, sem aquela música de pianinho. A música ali sobra, está over, dava pra ser mais elegante, mas os parcos 2 meses dados pela produção não me permitiram decantar tudo plenamente – sob meu ponto de vista teria sido um trabalho perfeito em sua forma final, não fossem estes pequenos pormenores – o início e a caminhada de Jesus. De qualquer modo, realizar uma montagem tão intensa em apenas 2 meses é um feito bastante grande, e tenho muito orgulho do que pude fazer em tão pouco tempo.

Fizemos um documentário anti-ético? Como montador assumo todas as construções de sentido, foram todas elas fruto de debate, discordâncias e afinidades que foram se resolvendo intuitiva e intelectualmente durante a montagem. É importante frisar o “intuitivo”, pois quando se lê e não se é intuitivo vira-se papagaio, passa-se a enxergar o mundo a partir de determinações que valem uma estrelinha no caderno no esquema clientelista da universidade, mas que tornam a visão obtusa e o pensamento monológico. Daí que a estreiteza intelectual passa a agir sobre os aspectos físicos, fica-se eunuco, com um ar de nerd, têm-se que usar óculos, de preferência fundos e com um grosso aro preto, no máximo vermelho, pra parecer mais despojado, e ficar com uma cara de pudim, com a mão no queixo, predisposto sempre a dizer algo inteligente e perspicaz a cada palavra. Passa-se a citar idéias de Louis Skorecki, que fica clamando pelo mundo um ambiente sagrado, silencioso e litúrgico para a experiência dentro das salas de cinema. É este o cinema das igrejinhas. Particularmente, acho uma merda esta idéia, assim como acho uma cagalhada sem fim a moral católica.

Sinceramente o cinema para mim é algo fetichista, profano e vulgar, suado, ruidoso, barulhento, sujo, fedendo a comida, perdido em alguma sala de Havana, da Índia ou da Nigéria. Disto os moços de cérebro perfumado também têm horror. E têm horror aos peitinhos da negra em El Benny, aos closes maravilhosos como nunca vi em El Benny, ao cinema como espetáculo público coletivo e popular de fato, e não como uma experiência privada numa sala cheia de gente. Uma projeção de El Benny, ficção cubana pós-moderna super bem produzida, em Havana, que tive a oportunidade de ver junto com Jean-Claude Bernardet foi a maior experiência cinematográfica que pude viver (a propósito, essas conexões aqui com Jean-Claude não são apenas acaso, cada vez mais acredito que tudo é uma coisa só. A vida é mesmo holística, é só saber conectar os signos). Tínhamos ido ao cinema para ver o público, o comportamento verdadeiramente sofisticado, cinematográfico e participativo do público cubano, e não houve um minuto sequer em que o público não falava, ou mesmo não se esmurrava, numa cena que ocorreu diante dos meus olhos maravilhados. Maravilhados por ter vivenciado o cinema como um evento social pleno, e maravilhados pela sorte de ter sido presenteado, para além de tudo, com um filme surpreendentemente belo, vivo, pulsante, musical – o oposto dos filmes desossados e secos que os acadêmicos têm o hábito de fazer quando se aventuram por trás das câmeras. Eu e Jean-Claude saímos então exaustos, empapados de suor, moídos e felizes daquela sala, como se estivéssemos saindo de uma deliciosa buceta gigante, de um transe xamânico, de uma festa de Exu. Sempre me pergunto porque é que os críticos gostam de fazer filmes descarnados, sem pinto nem bunda. Não entendem que a oposição ao espetáculo alienador do naturalismo norte-americano, e à pretensão de objetividade dos documentários da TV à Cabo, pode ser dada a partir do contra-espetáculo (mesmo dentro do documentário). Os esquerdistas católicos preferem a igreja, naturalmente, o silêncio, a castração, a penitência. Ai, meu Deus do céu, vai ser sério (e chato) assim no inferno.
Recordo deste episódio em Havana, assim de rompante porque há também uma situação interessante que me lembro, e que pude presenciar nos laboratórios da Teleimage, em São Paulo, e que ocorreu durante uma copiagem de Jesus no Mundo Maravilha. A sala de copiagem tinha uma parede de vidro, que dava para um corredor, e os técnicos do laboratório começaram aos poucos a se postar diante do monitor, e em poucos momentos o documentário foi uma sensação absoluta entre os funcionários do laboratório, que riam com o filme e se divertiam com ele. Ficaram ao final grudados àquilo e adoraram, coisa notável para um grupo de pessoas que lida com a imagem e processa milhares de copiagens de milhares de filmes em seu dia-a-dia. A explicação para isto, a meu ver, deve-se para minha satisfação à eficácia da montagem por um lado, que pôde seduzir e manter um ritmo adequado ao espectador de televisão; e por outro lado pelo fato justamente de Jesus no Mundo Maravilha possuir um humor que a tudo corrói, pois o humor popular é há séculos assim: não perdoa nada, nem a esquerda e nem a direita, e morre de rir dos aspectos grotescos do físico, dos risos canalhas, do ser humano apalhaçado submetido ao ridículo e à estupidez de que é capaz. E a cultura pequeno-burguesa (desculpem, mas não há mesmo melhor palavra) não suporta este humor popular, transcendente, despurado e desconhecedor da moral. Há séculos também que tenta combatê-lo. Há um plano em Jesus que sintetiza esta conexão com o humor popular muito bem: os 3 policiais brincando de foder com o palhaço, num plano médio, e o palhaço fingindo hiperbolicamente a sensação do empalamento quando recebe uma garrafada de plástico no cu. Newton traduz isto em idéias sobre o filme quando diz que “queria fazer uma mistura de Jean Rouch com Pânico na TV”. Então, realismo sim, mas não nos termos dogmáticos que tentam impor. Não o realismo humanista do clientelismo acadêmico. Ludismo então, lúdico e ludder, contra as máquinas acadêmicas do realismo pequeno-burguês!

Então gritam os pudins de óculos: “Humor, nem pensar. Ironia e cinismo, proibido! Escracho então, impossível! Em um documentário, imperdoável! Em um documentário de montagem, sacrílego!”. Os artigos que criticaram o documentário Jesus no Mundo Maravilha levantam a voz em nome da ética, mas seus julgamentos são de cunho moral. E de uma moral católica, visivelmente contaminada por idéias que se traduzem muitas vezes em expressões como “fé” na realidade, “pudor” diante do real, “dez mandamentos”, toda uma terminologia adaptada da liturgia católica. O documentário brasileiro hoje em dia tem até um “decálogo”, como é que é possível? Mas quem tem o espírito atento e não se deixa controlar por estas imposituras pula logo fora, como o próprio Eduardo Coutinho, que mesmo muito longe da oposição radical a isto, que Jesus no Mundo Maravilha representa, driblou e confundiu o obscurantismo realista pré-tropicalista, pré-cinema sonoro, pré-vertov, pré-bakhtin, pré-cervantes, e foi documentar a ficção do ser humano. Quando lia Dom Quixote, sempre tinha a impressão de estar vendo um documentário - não sei por quê :P

A rigor e terminantemente, não tenho nada contra o direito dos católicos, dos acadêmicos e dos realistas ortodoxos fazerem seus filmes. O problema é que agora eles querem dizer o que pode e o que não pode, e só eles querem fazer. E para isso têm formado uma patrulha pesada, que controla júris e editais através do lobby e da instrumentalização acadêmica, tentando determinar aquilo que é e o que não é. Sobre isto, o Newton tem outra frase da qual gosto muitíssimo, e que é mais ou menos assim: “quero que o mundo seja plural, claro, mas quando eu faço um filme eu só quero poder ser autoritário e dizer aquilo que eu penso”. Ser autoritário aqui significa poder ser livre para dizer o que quiser, sobre o que quiser, da forma que quiser, valendo-se do recurso estilístico que julgar mais apropriado para, naquele momento de sua vida e naquele momento do mundo, traduzir em matéria estética aquilo que pensa, sobre pessoas, coisas ou qualquer abstração.


Para terminar logo gostaria de fazer duas citações, mas adianto desde já que não é para conferir autoridade ao que escrevo (apenas acho-as legais, ajudam a sintetizar e a confundir muita coisa ao mesmo tempo); aprendi este recurso de conferência de autoridade nas aulas de redação do cursinho - acho até muito manhoso citar um clássico e tal, encher tudo com notas de rodapé, mas não gosto muito. Tenho mesmo índole de criador e de montador, prefiro lidar livremente com o que leio, vejo e ouço, daí que vou me apropriar sem citar a fonte (não chorem, meninas, vai tudo com aspas):


“Ética é estar à altura daquilo que lhe acontece”.
“A moral é a fraqueza do cérebro”

Este texto, “Escárnio da Crítica Católica”, entra desde já para os anais do documentário brasileiro.

Sem mais, vão ver se eu estou na esquina

André da Conceição Francioli

Lisboa, 16/04/2010

4 comentários:

fotojornalista Hugo Barbeta disse...

e o DVD, sai quando?
quero 3 copias urgente newton

nelson antunes disse...

oi, gostaria de poder comprar o dvd, a muito tempo que procuro e não encontro nem para poder assistir nas locadoras aqui no rio de janeiro. agradeço se mandar para meu e-mail uma forma de comprar este excelente filme que consegui assisti uma vez na tv brasil. nelsonantunnes@yahoo.com.br aguardo retorno e obrigado.

Ana Paula Ribeiro disse...

Olá, gostaria muito de adquirir uma cópia do dvd. Como faço para comprar, por favor? Caso haja esta possibilidade, meu e-mail é teseap@gmail.com
Muito obrigada,
Ana

Anônimo disse...

Chocar é muito fácil mesmo... HAhae